José do Nascimento | O Terramoto

(...) "Nunca consegui sentir aquele sismo como um terramoto que o comum das pessoas considerou (...) mas o meu verdadeiro terramoto, não durou 40 segundos, durou 40 meses de serviço militar obrigatório"

Nunca pedi a ninguém para ir à tropa, ansiei mesmo que se esquecessem de mim, mas logo no ano em que fiz 18 anos, tive que ir dar o nome, para que no ano em que os 20 anos se aproximavam, fui chamado à inspecção. Mais tarde fui compelido a apresentar-me no velho e extinto, mas histórico Hotel Costa em Sintra, despir-me completamente para que os médicos militares, enfermeiros e sei lá quem mais, verificassem que não tinha qualquer defeito e, logo ali, fui declarado apto para todo e qualquer serviço militar.

Em Julho de 1968, está a fazer 50 anos, munido das respectivas guias, mas sem grande parte do cabelo que na véspera tinha ficado no barbeiro, apresentei-me em Tavira no Centro de Instrução Militar de Sargentos de Infantaria (CISMI) onde, apesar da palavra “instrução” no nome do quartel, pouco me instruíram. Não aumentei conhecimentos que me interessassem mas, durante aquele Verão, aumentou a saudade de Sintra, apenas mitigada pela Tónia, uma parisiense de origem russa que passava férias em Cabanas de Tavira.

Quando esperava por um período de cinco dias de férias, entre o final da recruta e o início da especialidade, o Presidente do Conselho de Ministros, um tal senhor de Santa Comba Dão, caiu da cadeira e, durante aquela semana, todos os militares, pelo menos os milicianos, ficaram retidos nos quartéis.

Já sem a Tónia regressada a Paris e sem possibilidades de matar saudades de Sintra, levei Guia de Marcha directa para me apresentar em Cascais no Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea e Costa (CIAAC), outra vez a palavra “instrução” mas continuei a não aprender nada de jeito. Só uma semana depois pude matar saudades das chaminés do palácio e de mais uma vez admirar a esplendorosa encosta que culmina no Castelo dos Mouros.

Grupo do soldados, [ao meio José do Nascimento] em fogos reais na Ericeira
Os três meses de CIAAC correram bem mais amenos que a recruta de Tavira, a carga física era bem menos exigente e as peças de artilharia que tive de conhecer detalhadamente por fora e por dentro, não revelaram segredos insondáveis, o que me levaram a conseguir uma excelente classificação que me colocou em primazia para escolher a colocação, Queluz foi a óbvia, e em posição praticamente fora da possibilidade de uma mobilização para a guerra que decorria em África.

Colocado na Bateria de Instrução do Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa (RAAF) fui de imediato incumbido de monitorizar uma instrução de especialidade para operadores da peça de artilharia antiaérea de quatro centímetros, uma arma que vinha da II Grande Guerra Mundial, mas era o que tínhamos e que para a guerra que se desenrolava em África, de muito pouco servia e os operadores que dali saiam formados em tentar acertar em aviões, a maioria seria mobilizada e de G3 na mão, faria a guerra como atirador, especialidade para a qual aquela gente não estava formada, mas provavelmente estaria na primeira linha de “carne para canhão”.

Com esse pelotão, fiz os meus primeiros fogos reais de artilharia como instrutor, se como instruendo os fizera na zona do Guincho, não deixei a orla costeira e acantonámos alguns quilómetros mais a Norte, junto ao forte de Milreu, perto da Ericeira. Estávamos nos últimos dias do mês de Fevereiro de 1969.

Na noite de 27 para 28 de Fevereiro, estive de serviço a comandar uma secção que faria a guarda às peças de quatro centímetros e metralhadoras quadruplas.

Seria uma noite quase sem dormir uma vez que de duas em duas horas tinha que garantir o render das sentinelas, não poderia confiar que os praças se substituíssem sem a minha intervenção, o mais que certo seria alguém não chegar a ser rendido.

Depois de ter dormitado um pouco, sentado no banco de passageiro do camião que servia de base ao corpo de sentinelas, seriam três e meia da madrugada, para entreter o estômago, comecei a comer uma sandes de presunto acompanhada por uma cerveja refrescada pelo frio ar da noite. Abrigados sob a lona que cobria a carroçaria da viatura, numa camarata improvisada dormiam os soldados que eu teria de acordar para que a rendição fosse feita às quatro horas…

Faltariam 20 minutos para as quatro da madrugada, a viatura começou a abanar e conjuntamente com o súbito crescimento do mar, deu a sensação que estávamos em movimento a caminho da arriba, na camarata improvisada gritava-se para parar com aquilo, saltei para o lugar do condutor a fim de tentar travar a viatura, a sensação de estarmos em movimento continuava e gritei a ordem de abandonar o camião. No preciso momento em que pisei o chão, senti uma enorme guinada que quase me atirava ao chão, foi então que percebi o que se estava a passar:

“- Pessoal, é só um tremor de terra!”

O suspiro de alívio foi geral, realmente a viatura estava no mesmo sítio e a falésia continuava a cerca de 50 metros de distância. Deveria ter-se mandado evacuar a zona e deslocar aquela pequena força militar para um local mais elevado dado o risco de tsunami, mas na altura ninguém pensou em tal eventualidade, felizmente tudo acabou bem.

Acabados os fogos reais e já de regresso a casa, só então que soube que aquilo que para mim tinha sido um simples tremor de terra, tinha tido uma magnitude de 7,9 num máximo de 9 na escala de Richter e no país foi particularmente sentido no Algarve e no litoral Oeste entre os cabos da Roca e Carvoeiro, zona onde me encontrava quando ocorreu o sismo que na escala de Mercalli atingiu o grau VII, só suplantado pela zona de Vila do Bispo onde se atingiu o grau VIII num máximo de XII.

Dadas as circunstâncias, nunca consegui sentir aquele sismo como um terramoto que o comum das pessoas considerou e com toda a razão, mas o meu verdadeiro terramoto, não durou 40 segundos, durou 40 meses de serviço militar obrigatórios, entre Julho de 1968 e Outubro de 1971, tempo de vida esse que sempre considerei ter-me sido roubado.

José do Nascimento