José Manuel Anes | A Quinta da Regaleira, os Mistérios e as Iniciações

(...) os mundos subterrâneos da Regaleira poderiam estar presentes simbolicamente e como inspiração no manuscrito esotérico e mítico de Pessoa intitulado o “Subsolo”

A Quinta da Regaleira é fruto de dois espírito universais, o proprietário Carvalho Monteiro e o arquitecto Luigi Manini, que souberam oferecer-nos um verdadeiro testamento filosófico, espiritual e iniciático, numa dimensão ecuménica onde convivem o Paganismo e o Cristianismo e onde florescem diversas – não uma, mas várias – referências a tradições literárias e iniciáticas.

A Quinta da Regaleira, com os seus jardins, poços, grutas e capela, sugere, através da sua arquitectura nos jardins, fortemente, um percurso iniciático (simbólico ou real) que une, de um modo coerente e evolutivo, os diversos locais simbólicos e míticos nela presentes, na perspectiva da Iniciação aos Mistérios em geral e de diversas iniciações esotéricas em particular: todas as que seguem esse «arquétipo», isto é, o de o caminho que vai das Trevas à Luz.

Sendo a inspiração literária principal dos jardins a da Divina Comédia de Dante, isto não exclui outras tradições religiosas, literárias e iniciáticas, também presentes – e de que maneira! – na obra de Carvalho Monteiro e de Luigi Manini. A solução arquitectónica dos jardins da Regaleira oferece uma estrutura universal onde assentam todas as outras referências, como referi anteriormente no meu livro “Os jardins iniciáticos da Quinta da Regaleira” (Ésquilo, 2ª. Ed. , 2006) e mais recentemente no meu livro “Guia simbólico da Quinta da Regaleira” (Eranos, 2012), fazendo a síntese do Cristianismo e do Paganismo e de diversas tradições esotéricas e iniciáticas.

A Quinta da Regaleira em Sintra foi construir na sua forma actual, de 1900 a 1910, por António Augusto Carvalho Monteiro (Rio de Janeiro, 1848 – Sintra, 1920) tendo tido como arquitecto o italiano Luigi Manini, natural de Cremona e cenógrafo em S. Carlos, o Teatro lisboeta de ópera. Manini foi também o arquitecto do Palace Hotel do Buçaco, mas se existe alguma semelhança entre o neo-manuelino de ambos os Palácios, já nos jardins a diferença é notória quanto à dimensão simbólica e religiosa, a saber, cristã-católica no Buçaco – com destaque para a sua interessantíssima Via Sacra, infelizmente em muito mau estado – e ecuménica na Regaleira, onde o Cristianismo e o Paganismo convivem harmoniosamente, de tal modo que os seus dois santuários, o pagão, a Gruta de Leda e o cristão, a Capela “templária”, dizem por linguagens diferentes a mesma verdade simbólica e mítica, isto é, que o Espírito divino fecunda a matéria e esta vai gerar filhos: na Gruta de Leda, uma mulher, esta é fecundada por Zeus, disfarçado de cisne – Zeus é o maior dos deuses do paganismo grego e é equivalente ao Júpiter romano . e dará à luz os Gémeos, Castor e Pollux, De igual modo simbólico, o Espírito Santo – o Espírito do Deus Pai – desce, sob a forma de pomba, sobre Maria, a Mater, a Matriz, a Matéria que recebe o Espírito e dará à luz Jesus o Cristo, Filho de Deus. Uma diferença é de assinalar entre ambas as tradições religiosas, pois enquanto que os deuses das mitologias viviam na lenda e no mito, para o cristão Cristo encarnou e viveu entre nós num história e numa geografia determinadas.

Ora, sendo o arquitecto dos Palácios do Buçaco e da Regaleira o mesmo e se no primeiro caso há apenas revivalismo nacionalista e cristianismo católico, no segundo há a registar elementos esotéricos e míticos quie passamos a enumerar:
– o hermético uroboros (serpente que morde a cauda) à entrada do Palácio da Regaleira;
– um medalhão com o Pelicano alimentando os filhos, utilizado por fraternidades iniciáticas cristãs, como os rosa-cruzes, também à entrada do Palácio;
– o gibelino e paraclético “515” de Dante, na sala da caça, encimando a figuração do Milagre de Santo Huberto – e no centro do 515 , il messo di dio, está um monteiro com uma arma e dois cães de caça, provavelmente dizendo que Carvalho Monteiro quis deixar na Regaleira a sua mensagem, o seu testamento espiritual -, e nesta mesma sala a Oriente está uma figura feminina, o Feminino iluminador, iniciador;
– as três Graças maçónicas, Força Sabedoria e Beleza no tecto do escritório do proprietátrio no 2º. Andar;
– a referência simbólica ao culto popular do Espírito Santo numa varanda virada a sul, no Palácio da Regaleira,
– a referência ao Encoberto que estava num grande cadeirão numa das salas do rés-do-chão do Palácio e que o sebastianista Carvalho Monteiro reservava para o Rei que há-de vir.
– o facto de na Sala dos Reis as efígies dos sobreranos portuguses terminarem em D. João V, poderá significar que este seria o último a quem se poderia dizer que era o Monarca do Quinto Império português – como aliás refere Anselmo Caetano Castelo Branco no seu Tratado de Alquimia, ENNOEA.
– a presença de um forno no terraço do palácio que – omo asinali no meu primeiro artigo sobre a Regaleira – poderia ser para secar as peças (conchas, borboletas, etc.) desse grande coleccionador que foi Carvalho Monteiro, como para actividades espagíricas e alquímicas.

A Quinta da Regaleira tem pois duas componentes essenciais, o palácio neo-manuelino – celebração da grande dimensão histórica e mítica de Portugal – e os jardins – celebração das tradições religiosas, espirituais e iniciáticas que informaram, e informam muito da cultura ocidental e que foram inspiradas por tradições anteriores vindas da margem sul e oriental do Mediterrâneo, tradições essas que passamos a referir:
– Religiões de Mistérios, em que os deuses morriam e ressuscitavam: Osiris – morto e cortado em 14 pedaços pelo seu irmão Seth -, Attis, Adonis, Dionísio – também morto pelos Titans e dortado em 14 pedaços. De referir que o chamado Patamar dos Deuses da Regaleira tem vários deuses da mitologia greco-romana: Mercúrio/Hermes, Vulcano, Baco/Dionísio, etc. mas com referência também uma deusa Ceres/Deméter – cuja filha foi arrastada pela os mundos inferiores pelo rei dessas regiões, Hadés, mas que finalmente acabou por passar uma parte do ano debaixo de terra e a outra à superfície – e um herói e semi-deus, Orfeu, que também desceu aos infernos em demanda da sua amada Euridice.
– O próprio Cristianismo – a Quinta da Regaleira tem nos jardins uma Capela cristã – em que Cristo, depois da Paixão – em 14 estações da Via Sacra -, “morreu, desceu aos infernos, ressuscitou ascendeu aos céus onde está sentado à direita de Deus-Pai todo-poderoso…”.
– Este arquétipo de descida e ascensão e de morte e ressurreição vai estar presente na grande literatura de antanho, como as Metamorfoses de Ovídio, a Eneida de Virgílio e a já referida Divina Comédia de Dante.
– Por fim, as sociedades iniciáticas – rosacrucianas, templárias, maçónicas, etc. – criaram rituais de iniciação em que os neófitos viviam, simbolicamente, um processo de morte e ressurreição. Dessas sociedades iniciáticas mencionaremos a presença iconográfica, na Regaleira, de:
– Athanor (forno) alquímico nas traseiras da capela – uma torre com guela, “tour de gueles”, torres rubra, torre ao rubro, sendo o Athanor o forno onde a matéria se espiritualiza e o espírito se corporifica.
– Logo à entrada da Capela, por debaixo do coro, o Delta Radiante ou Triângulo Luminoso maçónico, com a cruz templária (na versão da Ordem de Cristo), provável referência a uma corrente maçónico-templária portuguesa. Em torno Delta encontramos uma corda contornando o rectângulo, provável referência à corda que contorna o tecto dos templos maçónicos e que simboliza a Cadeia de União universal, a fraternidade universal.
– Cruzes templária, cruzes da Ordem de Cristo e pentagramas no chão da capela, refeencia à tradição templária – note.se que a Igreja de Santa Maria do Olival em Tomar, que foi panteão dos Mestres templários, tem um pentagrama à entrada e outro no interior sob o altar. A cripta da Capela tem quadro janelas para a superfície com cruzes templárias (na variante teutónica, referência à Estrita Observância Templária?) e o seu chão é o ladrilhado branco o preto – o “xadrez do cjão ritual”, como escreve Pessoa num seu poema -, o “ladrilhado maçónico” inspirado no estandarte templário, o Beaucéant.
– Para além do maior Poço iniciático ter nove níveis, simbolizando os nove círculos do Inferno da Divina Comédia de Dante, não deixa de ser curiosa a coincidência de o grau maçónico (13º. do REAA) de Cavaleiro do Arco Real de Enoch mencionar um conjunto de 9 câmaras sucessivas, horizontais ou verticais (consoante os rituais), onde se desenrola a iniciação.

Para terminar esta breve incursão no SINTRA NOTÍCIAS pelos mistérios simbólicos e míticos da Regaleira deve referir-se que estas descobertas e identificações que fiz nos primeiros trabalhos partir de 1990 (inclusive) e que revelavam um enorme interesse por parte do proprietário e construtor (com Manini) da Quinta, foram confirmadas quando me foi oferecido (por Paulo Pereira) o catálogo da Biblioteca do Congresso, em Washington, sobre os manuscritos de Carvalho Monteiro, e onde estão listados manuscritos sobre Alquimia, Sebastianismo, Quinto Império, Templários, Maçonaria, etc.

Mas, não estaria completa uma referência à Quinta da Regaleira sem mencionarmos o facto de nos poemas explicitamente esotéricos que Fernando Pessoa escreveu de 1930 até 1935, estarem referências, em nosso entender, explícitas à Regaleira – “Estalagem do assombro”, “o muro da estrada”, “o xadrez do chão ritual” (a que asiste…) na cripta da capela, o “atro poço”, os “degraus” do mesmo, etc. etc. E os poemas “Na Sombra do Monte Abiegno” e “Do vale à montanha”, ambos de 1932 e o poema “O último sortilégio”, publicado na revista coimbrã “Presença” nº. 29, de 1930, são em qualquer caso uma bela descrição da geografia e da atmosfera simbólica e mítica da Regaleira, podendo ser também referências à sua dimensão iniciática e mesmo ritualistica.

Vejamos o poema “Eros e Psique” publicado na revista “Presença”, n~.41/42 de Maio de 1934, em que o Poeta apresenta em exergue um trecho do que ele nos diz ser o “Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal”:

…E assim vedes, meu Irmão, que as verdades
Que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas
Que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são,
Ainda que opostas, a mesma verdade

Conta a lenda que dormia/Uma Princesa encantada/
A quem só despertaria/Um Infante que viria/De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,/ Vencer o mal e o bem,/
Antes que, já libertado,/Deixasse o caminho errado/Por o que à Princesa vem.
A Princesa adormecida, Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,/E orna-lhe a fonte esquecida,/Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,/Sem saber que intuito tem,/
Rompe o caminho fadado./Ele dela é ignorado./Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino -/Ela dormindo encantada,/Ele buscando-a sem tino/
Pelo processo divino/Que faz existir a estrada.
E se bem que seja obscuro/Tudo pela estrada fora,/
E falso, ele vem seguro,/E, vencendo estrada e muro,/Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,/Á cabeça, em maresia,/Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era/A Princesa que dormia

Vejamos ainda estes trechos:
A Montanha por achar/Há-de ter, quando a encontrar,/
Um templo aberto na pedra/da encosta onde nada medra.
O santuário que tiver,/Quando o encontrar, há-de ser/
Na montanha procurada/E na gruta ali achada…
(poema de F.P. datado de 1934)
…Ou em êxtase mágico perdida,/Ao luar, à boca da caverna funda.
…”E as longínquas deidades do atro poço,/
(trechos do poema “O Último Sortilégio”, publicado na revista “Presença” em Dezembro de 1930)
…”Deixar atrás, descendo, passo a passo,/A escadaria cujos degraus são/
Sucessivos aumentos de negrume,/Até ao extremo solo e noite inteira”
(poema de F.P. datado de 1932)

E ainda o poema Iniciação:
Não dormes entre os ciprestes,/ pois não há sono no mundo (…)
Mas na Estalagem do Assombro/Tiram-te os Anjos a capa:/
Segues sem capa no ombro,/Com o pouco que te tapa,
Então Arcanjos da Estrada/Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada: tens só teu corpo que és tu,
Por fim na funda Caverna,/Os Deuses despem-te mais,
Teu corpo cessa, alma externa,/Mas vês que são teus iguais (…)
A sombra das tuas vestes/Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, ntre ciprestes. (…)
Neófito, não há morte.
(poema sem data publicado na revista “Presença”, nº. 35, em Maio de 1935)

De referir ainda que os mundos subterrâneos da Regaleira poderiam estar presentes simbolicamente e como inspiração no manuscrito esotérico e mítico de Pessoa intitulado o “Subsolo”.

 

José Manuel Morais Anes | Criminalista e professor universitário. É autor de várias obras sobre esoterismo e espiritualidades.

 

Fotografias da Quinta da Regaleira