João Rodil | Mont Fleuri e Parque das Merendas. Notas para a sua História

Na perspectiva de contribuir para uma melhor compreensão da criação do Parque das Merendas e da construção do Mont Fleuri, aqui esboçamos um pouco da História das duas propriedades por estarem, intimamente, ligadas entre si.

Edificado por Pedro Gomes da Silva nos inícios do século XX, o Mont Fleuri fica sobranceiro ao, então, Largo dos Pisões, actual Largo Dr. Carlos França.

Vereador eleito da Câmara Municipal de Sintra, presidida então por José Bento Costa, e integrando uma das mais destacadas vereações da Primeira República, Pedro Gomes da Silva tomou posse a 16 de Janeiro de 1919. Homem abastado, convicto republicano e democrata, foi um grande benemérito de Sintra, nomeadamente da Misericórdia e do Hospital. Viria a falecer a 2 de Maio de 1933, legando as suas propriedades ao Município.

Na sessão de 22 de Março de 1934, a Câmara recebe, oficialmente, o legado de Pedro Gomes da Silva deixado em testamento: «O Senhor Presidente, comunica que foi assinado no dia dezasseis do corrente a escritura de entrega do legado do Senhor Pedro Gomes da Silva, á vila de Sintra, pelo testamenteiro senhor Julio Correia de Sá, pelo que tomou posse em nome da Camara da propriedade Mont Fleuri e terrenos adjacentes, em todos os moveis e louças nela existentes, e mais a quantia de trezentos mil escudos, que está incluida no saldo existente em poder do tesoureiro, e termina por dizer que lhe apraz registar a forma porque o excelentissimo testamenteiro se dignou liquidar o legado. – Foi deliberado que se depositasse aquela quantia na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdencia.».

A 24 de Maio de 1934, a Câmara decide levar a hasta pública as propriedades, nomeadamente o emblemático chalet Mont Fleuri: «Legado Pedro Gomes: = Foi deliberado autorisar o Excelentissimo Presidente a, de acôrdo com a Comissão administrativa da Misericordia designar o dia para a venda em hasta publica do legado Pedro Gomes da Silva, da forma que se reconheça mais conveniente, e possivelmente distribuindo-se, para a venda em separado, o valôr atribuido no processo de liquidação do imposto de sucessão dos imoveis, pelo chalet e jardim e pelos terrenos fronteiros, como fôr decidido por peritos nomeados por uma e outra parte.».

A 23 de Agosto de 1834, ficamos a saber o que aconteceu nas duas primeiras hastas públicas: «Legado Pedro Gomes da Silva: = Não tendo havido lecitantes nas duas primeiras praças sobre os bens imoveis que constituem o legado de Pedro Gomes da Silva, á Vila de Sintra, a Comissão Administrativa delibera que os mesmos voltem á praça no dia dois do proximo mês de Setembro, pelas quinze horas, mas sem valôr, reservando-se á Camara o direito de não fazer adjudicação, se o preço lhe não convier.».

Bom, só a 20 de Setembro se esclarece o que se passou nessa ida à praça do referido legado. Houve licitações mas ficaram-se por quantias que o Presidente da Comissão Administrativa, o dr. Álvaro de Miranda Pinto de Vasconcelos, achou de baixo valor, não tendo adjudicado os bens. A mais alta, ficara-se pelos duzentos contos para o chalet Mont Fleuri e cinquenta contos para a mata.

Visita do Presidente Óscar Carmona a Sintra

Na reunião de 24 de Agosto prepara-se a recepção a Óscar Carmona: «Vesita de Sua Excelencia o Senhor Presidente da Republica: – exposto pelo Senhor Presidente que, tendo Sua Excelencia o Senhor Presidente da Republica acedido aos pedidos feitos para vir a Sintra, onde permanecerá alguns dias, e não havendo no Palacio Nacional dependencias suficientes para Sua Excelencia e Comitiva; – foi deliberado d’acordo com a Comissão Administrativa da Misericordia ceder para a instalação a propriedade Mont Fleuri, durante os poucos dias que Sua Excelencia aqui permaneça, autorizando-se o Senhor Presidente a, de acordo e em comparticipação com a Comissão de Iniciativa fazer as necessarias despezas para condigna acomodação de Sua Excelencia e da recepção a fazer-lhe, bem como aquelas que porventura resultarem dos serviços de segurança que as respectivas autoridades entendam dever tomar e á Camara possam competir.».

A 27 de Maio de 1936, voltava a reunião de Câmara o «Legado Pedro Gomes da Silva»: «Foi deliberado que se pozesse novamente em praça, no dia vinte oito do proximo mês de Junho, pelas treze horas e com base de licitação de duzentos e cincuenta mil escudos, a propriedade “Mont Fleuri” e respectiva mata, estabelecendo-se a condição de poder ser vendida em separado, se houver licitantes cujas ofertas em separado, sejam a maior oferta do conjunto.». Ou seja, depois de tantas tentativas para vender o legado, a Câmara voltava à praça e, desta feita, nem se importava de vender em separado a quinta e a mata que lhe ficava anexa.

A 21 de Julho de 1937, vem de novo à baila o «Legado Pedro Gomes da Silva», mudando, uma vez mais, de estratégia, a ver se conseguiam vender aquelas propriedades que já por tantas vezes tinham ido à praça: «Não tendo havido concorrentes á praça anunciada para o dia vinte oito do mês findo, das propriedades do legado Pedro Gomes da Silva, foi deliberado anunciar nova praça para o dia oito de Agosto proximo, pelas quinze horas, das duas propriedades, constituindo um só lote, posto em praça por duzentos e cinquenta mil escudos. Se o lote não obtiver lançadores serão as mesmas propriedades postas em praça separadamente, uma hora depois, pelos preços de cento e oitenta mil escudos o Mont Fleuri e setenta mil escudos a mata.».

Na acta de 11 de Agosto de 1937, finalmente surgem novidades sobre o legado Pedro Gomes da Silva, tanto no que respeita à propriedade Mont Fleuri, como também em relação à mata: «O senhor Presidente informa que conforme se anunciara e nos termos em que fôra deliberado, se realisou no dia oito do correntea hasta publica para a venda dos bens do legado Pedro Gomes da Silva e que, tendo-se posto em praça a propriedade Mont Fleuri e mata, num só lote com a base de licitação de dozentos e cinquenta contos, não houve licitante, pelo que, passada uma hora se poz em praça somente a propriedade Mont Fleuri, com a base de licitação de cento e oitenta contos, que foi coberta com mais um conto, pelo senhor Alfredo da Silva a quem foi feita a adjudicação da referida propriedade. Seguidamente foi posta em praça a mata, com a base de licitação de setenta contos, declarando o senhor Alfredo da Silva que, tendo conhecimento que a Camara Municipal tinha interesse em ficar com a mata, para goso publico e para utilisação da saibreira que ali existe e embora lhe interessasse a aquisição da mesma mata, para garantia mais segura, em sua opinião, das nascentes e caixa de divisão de aguas que ali possue em comum com outros individuos, não tinha duvida em acordar com a Camara em adquirir em comum a referida mata reservando para si uma area na proporção de 16,674 por cento pouco mais ou menos da superficie total e ficando a parte restante de posse da Camara. Acordando ele Presidente e o vogal senhor Joaquim Mario Garcia e Cunha, nos termos da autorisação que lhe havia sido dada, de fazer a arrematação em comum, foi coberta a base de licitação com quinhentos escudos, ficando o licitante senhor Alfredo da Silva com a percentagem digo com a area de 16,674 po cento do total da superficie total digo superficie da propriedade e continuando a parte restante na posse do municipio.».

Na sessão de Câmara de 29 de Setembro de 1937, dá-se uma verdadeira reviravolta no caso do «Legado Pedro Gomes da Silva»: «O senhor Presidente comunicou que, não tendo o senhor Alfredo da Silva, arrematante da propriedade Mont Fleury e a sexta parte da mata anexa, legado do benemerito Pedro Gomes da Silva, chegado a assinar o competente auto, nem praticado os actos subsequentes, entendeu que devia considerar sem efeito a arrematação e, para aproveitar tempo, designou o dia dezasete de outubro proximo ás quinze horas para novamente se pôr em praça os predios legados nas mesmas condições em que tinham sido da ultima vez. A Comissão aprovou por unanimidade os actos praticados pelo senhor presidente.».
Era, de facto, um revés incrível nesta demorada novela. Parecia que tudo estava resolvido mas, de repente, tudo voltava à estaca zero. Contudo, esta será uma história com final feliz para a Câmara de então.

Na reunião de Câmara de 20 de Outubro de 1937, surge-nos, finalmente, o desfecho da novela «Legado Pedro Gomes da Silva». Trata-se de um final algo surpreendente, já que as propriedades são licitadas, desta vez, não por Alfredo da Silva mas sim pela sua filha, Amélia Dias d’Oliveira da Silva Melo. O texto, muito similar ao anterior que transcrevemos sobre a hasta pública, merece, no entanto, ser aqui fixado: «Legado Pedro Gomes da Silva. – O senhor Presidente informa que, conforme fora anunciado, se realisou no dia dezasete do corrente, a hasta publica para a venda dos bens do legado Pedro Gomes da Silva e que, tendo-se posto em praça a propriedade Mont Fleuri e mata, num só lote com a base de licitação de dozentos e cinquenta contos, não houve licitante, pelo que, passada uma hora se pôz em praça sómente a propriedade Mont Fleuri, com a base de licitação de cento e oitenta contos, que foi coberto com mais um conto, pela senhora Dona Amelia Dias d’Oliveira da Silva Melo, casada com Manuel Augusto José de Melo, a quem foi feita a adjudicação da referida propriedade. Seguidamente foi posta em praça a mata, declarando a mesma senhora Dona Amelia Dias d’Oliveira da Silva Melo que, tendo conhecimento que a Camara Municipal tinha interesse em ficar com a mata, para goso publico e para utilisação da saibreira que ali existe e embora lhe interessasse a aquisição da mesma mata, para garantia mais segura, em sua opinião, das nascentes e caixa de divisão de aguas que seu pae, o senhor Alfredo da Silva ali possue em comum com outros individuos, não tinha duvida em acordar com a Camara em adquirir em comum a referida mata, reservando para si uma area na proporção de uma sexta parte pouco mais ou menos e ficando as restantes cinco sextas partes de posse da Camara. Acordando ele Presidente e o vogal senhor Joaquim Mario Garcia e Cunha, nos termos da autorisação que lhe havia sido dada em sessão de doze de Julho de mil novecentos e trinta e quatro e ratificada em sessão de quatro de Agosto do corrente ano, de fazer a arrematação em comum foi coberta a base de licitação com quinhentos escudos, ficando a licitante Dona Amelia Dias d’Oliveira da Silva Melo com uma sexta parte da propriedade da mata, compreendendo o local das nascentes e pia divisoria, como foi demarcado na respectiva planta e continuando a parte restante na posse do Municipio.».
E pronto, esta demanda de anos para vender os bens que o benemérito Pedro Gomes da Silva havia deixado ao Município, chegava assim ao fim. Contudo, há neste texto uma passagem que coloca algumas interrogações, quando D. Amélia Melo refere que quer ficar com a parte da mata que tem as «nascentes e caixa de divisão de aguas que seu pae, o senhor Alfredo da Silva ali possue em comum com outros individuos». Sabendo nós que a hasta pública anterior, onde as mesmas propriedades foram arrematadas por Alfredo da Silva, tinha sido considerada nula, está bom de ver que este grande industrial possuía outras propriedades, ou propriedade próxima daquela zona e que se servia das águas que ali nascem. E, de facto, Alfredo da Silva tinha morada de veraneio na chamada «Casa Italiana», propriedade que havia sido desanexada da Quinta do Saldanha em 1930 e que, dada a proximidade, deveria receber as águas da dita mata.

Os recentes acontecimentos, dando conta da intenção de venda por parte da família Melo e do exercício de preferência, por parte da Câmara Municipal de Sintra, na sua aquisição, é uma reposição da própria História do local: uma propriedade legada em testamento por um homem-bom e de altos valores democráticos a bem do Município que, em tempos exacerbados dos inícios do Estado Novo, se desfez dela a todo o custo. Fazer retornar o Mont Fleuri ao património municipal parece-nos, caso aconteça, a reparação de um erro do passado.
O que também ficou para os nossos dias é aquela «mata», na sua maior parte em posse da Câmara, e que se transformou no ameno e delicioso Parque das Merendas, ainda hoje lugar frondoso e ameno da paisagem de Sintra.

João Rodil, historiador