José do Nascimento | Primeiro de Maio de 1974 em Sintra

(...) "44 anos depois, para alguns sempre fui um perigoso esquerdista, para outros o “camarada”, ainda outros o companheiro, felizmente para alguns ainda passo por um “gajo porreiro”, estes são os amigos, que tal como eu, sorriem com esta história."

Era incondicionalmente um dia de festa, apesar de ainda não se saber o que viria a sair da revolução de Abril, mas as espectativas eram muitas e superavam as minhas possíveis apreensões. Foi há 44 anos.

Saí bem cedo de casa, deixando a Ana ainda deitada, e em modo pedestre, como, por gosto, é meu uso e costume, dirigi-me até ao Centro Histórico da Vila onde a manifestação do primeiro de Maio de 1974 teria o seu início, no Terreiro Rainha D. Amélia, que melhor conhecemos por Paço.

Surpreendeu-me a multidão que se começou a juntar, alegrou-me verificar que em número, os manifestantes eram mais que os das tímidas manifestações que em Sintra já tinha assistido, desde a “silenciosa Angola é nossa” até outras que não lembro o motivo. Naquele primeiro de Maio encheu-se o Paço de uma multidão que nunca tinha visto, provavelmente com alguns que só teriam em mente o objectivo de se safarem da situação criada…

“O primeiro de Maio de 1974, não só pelo seu simbolismo, mas também pelo que me aconteceu em casa, ficará inesquecível para todo o sempre”

Outros autores já escreveram o trajecto e episódios vividos durante aquela memorável manifestação, cabe-me descrever um episódio que só eu vivi:

Quase no final do trajecto que teria sido definido percorrer pelas ruas de Sintra, já na Portela, com alguma surpresa minha, deparei com a manifestação a entrar na Rua Pedro de Cintra, para logo de seguida virar à esquerda para a Rua José Bento Costa e parar mesmo em frente ao prédio onde residia. Levantei os olhos para o meu andar, o primeiro, e nas três varandas da minha casa, cirandavam pessoas que me eram desconhecidas, furei, cheguei mesmo a atropelar, deparei com a porta do prédio aberta e o mesmo acontecia na porta de minha casa, foi aí que encontrei o caos!

Na sala, estiraçados sobre os sofás, acantonavam-se os seis militares da BA1 comandados por um furriel. Uns quantos técnicos aprontavam a aparelhagem sonora, para que os discursos pudessem ser audíveis. A cozinha fora tomada de assalto por alguns candidatos a oradores que se queriam dessedentar. Nas casas de banho vertiam-se necessidades incontidas. No quarto, a minha cama estava ocupada por várias pessoas sentadas, fumando os seus cigarros que apagavam esmagando as beatas com os pés de encontro à alcatifa. A Ana e uma amiga que morava no terceiro piso estavam refugiadas numa outra sala, nenhuma delas sabia o que fazer. Era tempo de pôr ordem naquilo!

Contei com a ajuda do furriel a quem a “turba”(provavelmente nunca as aspas foram tão apropriadamente empregues, porque aquela gente provou que de turba tinha pouco) foi obedecendo e evacuou-se o quarto que se fechou à chave. Mas estava demasiada gente dentro de casa. Decidi então que dentro da residência só ficariam os militares, um deles de serviço à porta de entrada e os restantes pôr-se-iam na varanda do lado esquerdo, mostrando-se com símbolos da revolução, na varanda do meio estaria um dos organizadores da manifestação, um técnico de som e o orador de momento. A aguardar na sala e para evitar pontos mortos, já estaria o orador seguinte, portanto em simultâneo dentro de casa só dois oradores. A Ana e a amiga serviriam a água aos mais sedentos. Eu nomeei-me supervisor dos acontecimentos. Devo realçar a compreensão para com a s minhas exigências, ninguém reclamou e foi com todo o civismo que todos os outros que estavam a mais abandonaram a residência, aguardando alguns nas escadas, a sua vez de assomarem à varanda.

Só depois de terminada a manifestação fiquei conhecedor de como tudo aquilo tinha acontecido. O cortejo estava previsto ter o seu términus na Av. Félix Alves Pereira, com os discursos a serem proferidos de uma das janelas da casa de um dos organizadores, mas tratava-se de um segundo ou terceiro andar e não reunia as melhores condições. Uma das organizadoras de nome Maria da Graça Machado Macedo, sogra do meu irmão mais velho, lembrou-se da minha casa, que realmente tinha condições para uma boa tribuna, e não foi de modas, bateu à porta, a Ana atendeu e ao pedido de uma pessoa íntima da família, apetecendo-lhe recusar, não teve essa coragem e abriu as portas de par e par, chamou a amiga do terceiro para lhe fazer companhia enquanto o caos se instalava.

Se eu estivesse em casa e tivesse sido eu a atender a Maria da Graça, perante o mesmo pedido, julgo que acederia, mas as regras teriam sido outra, decerto que o temporário caos não se verificaria e teria salvo a minha alcatifa.

O facto da manifestação ter terminado em minha casa fez com que tivesse ficado conotado como militante de algum partido ou movimento político, coisa que nunca fui, não porque seja contra partidos ou movimentos, mas simplesmente porque nunca fui bafejado com o dom da militância. O certo é que ainda hoje, 44 anos depois, para alguns sempre fui um perigoso esquerdista, para outros o “camarada”, ainda outros o companheiro, felizmente para alguns ainda passo por um “gajo porreiro”, estes são os amigos, que tal como eu, sorriem com esta história.

No final, se cheguei a pensar ir de tarde até Lisboa, rapidamente mudei de ideias, havia uma casa para aspirar e uma alcatifa para tentar salvar das queimadelas das beatas, nervosamente esmagadas pelos sapatos daqueles que se esqueceram que havia cinzeiros em casa.

O primeiro de Maio de 1974, não só pelo seu simbolismo, mas também pelo que me aconteceu em casa, ficará inesquecível para todo o sempre.

José do Nascimento