Medicina e Bioética

Opinião | Professor Doutor, António Maia Gonçalves

Bioética é um conceito dos anos setenta. Foi Van Rensselaer Potter no seu livro Bridge to the future (1971) que escreveu “Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”

As várias ciências mostram-nos o mundo como ele é. A Ética diz-nos o que ele devia ser. A Bioética permite ao Homem saber como deve atuar. Cinco anos depois dois médicos norte americanos Childress e Beauchamps enunciam os princípios que deveriam reger a investigação cientifica, e o juízo clinico. Definem quatro princípios: o de beneficiencia, não maleficiencia, autonomia e justiça. E a verdade é que o principalismo não sendo nenhuma teoria bioética, mas apenas uma metodologia, se generalizou o seu uso na prática clinica, ou se quisermos, na avaliação ética das decisões clinicas. A questão que se colocou é que não estando esses princípios hierarquizados, a sua aplicação poderia ser menos clara.

A medicina não é uma ciência exacta, e assim sendo, as decisões clinicas são no fundo uma promessa de meios, e não uma garantia de um resultado. Por exemplo quando eu opto por uma terapêutica em detrimento de outra, existirá sempre uma margem de erro, porque as variáveis envolvidas não são todas controláveis. E então a questão que perdurou durante algum tempo foi qual destes princípios deveria prevalecer sobre os outros. A verdade é que a prática médica reflecte necessariamente os valores do seu tempo. E a medicina foi-se centrando cada vez mais na individualidade e dignidade da pessoa doente, sendo que nos dias de hoje a autonomia da vontade do doente deverá ser sempre respeitada.

É evidente que o médico, como detentor da capacidade técnica e cientifica, tem o dever de fazer diagnósticos e propor tratamentos, mas é ao doente que cabe em ultima instancia optar qual o tratamento que quer seguir. Por exemplo em face de uma doença oncológica com um prognóstico reservado. Mesmo cientificamente pode não ser claro qual o melhor esquema terapêutico a utilizar, e se uma intervenção cirúrgica de elevado risco deve ou não ser efectuada. Essa decisão tem obviamente que ser partilhada pelo médico e pelo doente.

A autonomia como eu a entendo, reside no equilíbrio da relação médico-doente, como garante de uma tomada de decisão partilhada por ambos, no integral respeito da vontade e valores do doente. É esta ética mais humanista que permite hoje que um doente crónico, decida antecipadamente quais os tratamentos futuros a que quer ser sujeito quando a doença estiver mais avançada.

Por exemplo um doente com uma doença neurológica degenerativa, que sabe que a doença irá evoluir com compromisso cognitivo e necessidade de suporte ventilatório (de ser ligado a um ventilador). Ele pode antecipadamente e devidamente esclarecido, e enquanto tem a sua capacidade cognitiva integra, estabelecer que numa fase avançada da doença recusa ser admitido numa unidade de cuidados intensivos, e quer apenas ser sujeito a cuidados de conforto. E a sua vontade deve ser respeitada. São este tipo de situações que configuram o que se designa por declaração antecipada de vontades.

Depois há um conceito mais abstrato a que se chama testamento vital. Em que basicamente , e de uma forma que eu diria abstrata porque não se está em face de nenhuma doença, um cidadão pode preencher um documento , que tem validade de cinco anos, em que estabelece por exemplo que em caso de paragem cardio respiratória não quer ser reanimado, ou que não quer nunca ser sujeita medidas de cuidados intensivos, etc. Estes documentos são depositados numa base de dados RENTEV- registo nacional de testamento vital, a que os médicos devem aceder antes de iniciar estas terapêuticas mais de fim de linha, para garantir que não desrespeitam a vontade previamente expressa do doente.

É claro que numa relação médico-doente saudável, este pensamento abstrato de recusa de tratamentos na ausência de qualquer patologia objectiva, não tem qualquer sentido. Porque as variáveis implicadas em cada situação clinica são tantas e tão imprevisíveis, que uma recusa de tratamento na ausência de doença, não parece ser uma decisão sensata.

A Bioética permitiu que a prática clinica se centrasse no reforço da autonomia do doente, e também reforçou a relação médico doente. Eu diria que numa medicina dotada cada vez de mais meios técnicos, e múltiplas opções terapêuticas, que favoreceria uma medicina menos humanizada, a Bioética garantiu que a medicina reforçasse o seu cariz humanista.


Professor Doutor, António Maia Gonçalves
Médico e Bioeticista

Fotografia: DR Jornal SOL
Sintra Notícias com Associação Portuguesa de Imprensa