Filipe Glória Silva | “Bom Sono em todas a idades”

Filipe Glória Silva, Pediatra, Coordenador da Unidade de Neurodesenvolvimento e responsável pela Consulta do Sono Pediátrica da Unidade de Sono do Hospital CUF Sintra

É sabido que os povos latinos não são muito disciplinados com o sono, incluindo o sono das crianças. Mas existem muito boas razões para respeitar as horas de sono recomendadas. As consequência do mau sono (tempo de sono reduzido ou sono de má qualidade) são múltiplas e muito negativas:
● problemas de concentração, afetando a memória e aprendizagem
● maior propensão para erros e acidentes
● irritabilidade, ansiedade e depressão
● maior risco de excesso de peso e obesidade
● maior risco de hipertensão, doenças cardiovasculares e diabetes.

Para se conseguir respeitar o sono, por vezes é necessário mudar horários, prioridades, estilo de vida, ou mudar de emprego – são decisões difíceis mas necessárias.

A Importância dos ritmos circadianos e do sono
Um conceito relativamente recente na Medicina, é o de ritmos circadianos. Já era sabido que as pessoas que realizam viagens transcontinentais e mudam de fuso horário, ficam com “os horários trocados”, isto é, com sono perturbado e cansaço durante o dia. O que veio a descobrir-se é que o nosso organismo dispõe de um relógio biológico que nos ajuda a ter sono na hora certa, habitualmente de noite, e estar bem acordados durante o dia. Contudo, existem outros sistemas no corpo com funções que variam ao longo do dia (os tais ritmos circadianos) que incluem a regulação da temperatura corporal, a regulação cardiovascular, atividade hormonal e metabólica. O mau sono desregula estes sistemas e dá origem à pesada lista de consequências que referimos no início.

O que é o mau sono?
Convém diferenciar que o mau sono pode relacionar-se com problemas de quantidade e/ou qualidade:
● Privação de sono – é uma condição mantida em que a duração do sono é inferior às necessidades da pessoa, que variam com a idade (veja o quadro do tempo de sono recomendado)
● Sono de má qualidade – é a condição de sono que, mesmo com a duração adequada, não é reparador, associando-se a cansaço matinal e/ou sonolência diurna.

É de notar que, mesmo entre pessoas da mesma idade, as necessidades de sono variam e é necessário avaliar para cada pessoa se o tempo de sono atual permite acordar facilmente e com energia e não sofrer de sonolência durante dia. Algumas pessoas precisam de dormir mais tempo do que a média para ficarem bem. A causa mais frequente do tempo de sono insuficiente é deitar demasiado tarde e/ou trabalhar por turnos, mas existem pessoas que se deitam cedo mas têm dificuldade em adormecer (insónia).

Uma das causas mais frequentes de má qualidade do sono é a obstrução respiratória com ressonar persistente e mesmo pausas respiratórias (apneias). Mesmo sem se dar conta, esta condição origina muitos despertares noturnos que arruínam o sono.

Quadro: Tempo de sono recomendado
(tempo total do dia, incluindo as sestas)

Sesta – sim ou não?
A idade de deixar de precisar de sesta varia, entre os 3 e os 5 anos. Quando a criança deixa de dormir sesta, é importante verificar se mantém o tempo de sono recomendado, o que implica deitar mais cedo. Se a criança fica sonolenta, com humor irritável ou com comportamento hiperactivo quando não dorme a sesta, então é porque ainda precisa e deve insistir-se para que o faça.

As crianças também têm perturbações do sono
Como pediatra, preocupa-me particularmente as perturbações do sono das crianças. A perturbação do sono mais comum é a insónia comportamental da infância, que afeta 10 a 30% das crianças. Pode incluir resistência em ir para a cama, dificuldade em adormecer e despertares frequentes durante a noite. Depois, vêm as parassónias que são comportamentos estranhos que ocorrem durante o sono como o falar (sonilóquio), o bruxismo (ranger os dentes), os terrores nocturnos e despertares confusionais e o sonambulismo. As parassónias esporádicas não são um problema, mas se forem muito frequentes ou tiverem consequências durante o dia, devem ser avaliadas. Existem também condições de movimentos rítmicos no adormecer como abanar a cabeça ou o tronco que se tornam uma perturbação se tiverem consequências negativas. As perturbações do sono das crianças, particularmente a insónia comportamental, acabam por perturbar gravemente o sono dos pais e a qualidade vida da família. Não são um problema menor.

Ressonar não é normal!
Uma condição frequente, e por vezes desvalorizada, é o ressoar persistente com ou sem pausas. Em todas as idades, o ressonar persistente não é normal e deve ser reportado ao médico assistente. As pessoas com ressonar persistente tendem a ter sono fragmentado e não reparador. Nas crianças, esta condição pode dar origem a problemas de atenção e de comportamento e, nos adultos, sonolência diurna e doenças cardiovasculares.

Socorro! O meu filho não dorme!
Como convencer as crianças a ir para a cama quando elas não querem ou aparentemente não têm sono? Devemos começar por verificar se se está a deitar demasiado cedo avaliando o tempo de sono recomendado. É também muito importante que a criança possa desfrutar de um tempo de qualidade com os pais antes da hora de dormir, se não a separação da noite vai ser muito difícil. Depois, ajuda muito estabelecer uma rotina previsível com hora de deitar e uns três momentos ou acontecimentos previsíveis como a higiene pessoal, ler uma história, fazer uma oração, enfim, cada família tem sua rotina. As rotinas dão segurança, ajudam a cumprir as regras e criam um “ritmo de desaceleração” que facilita a chegada do sono. No início pode ser necessário ficar sentado ao lado da cama e, com o tempo, tentar sair para a criança se habituar a adormecer de forma independente. O leite não deve ser dado na cama. Se for mesmo necessário, é melhor dar antes, na sala.
Algumas crianças vão oferecer resistência e vão fazer birras. Mas se os pais forem persistentes, assertivos e consistentes, vão ver resultados. É preciso combinar calma e afeto com regras claras e ajudar a criança a cumpri-las. Afinal, quem tem a autoridade lá em casa? É desestruturante para uma criança poder “mandar” nos adultos.

Os medos da noite
Os medos e os pesadelos fazem parte do desenvolvimento normal das crianças, incluindo o medo do escuro e a separação dos pais. Contudo, são mais frequentes após situações geradoras de ansiedade, perda, tristeza, de maior stress (por exemplo, por problemas na escola) ou de experiências traumáticas. Também podem estar relacionados com a exposição a personagens e cenas assustadoras de filmes, que é preciso controlar. Mais uma vez, as rotinas de ir para a cama são uma boa ajuda. É necessário entender também quais são os medos e falar sobre eles, mostrando à criança como se pode sentir mais segura. Existem livros para crianças sobre os medos que podem ser uma boa forma de os trabalhar. Quando existem dificuldades persistentes a este nível, justifica-se uma avaliação mais detalhada numa Consulta de Psicologia.

Terrores noturnos – como lidar?
Os terrores nocturnos têm manifestações semelhantes aos pesadelos mas ocorrem numa fase diferente do sono (mais cedo, durante as primeiras horas da noite). A criança acorda muito assustada, transtornada e difícil de acalmar. Na verdade, não parece (e não está!) bem acordada, de modo que não se lembra do sucedido no dia seguinte, ao contrário do que acontece nos pesadelos. São mais frequentes entre os 2 e os 8 anos e a criança deve ser apenas amparada e tranquilizada até voltar a sossegar. Os terrores noturnos esporádicos são perturbações do sono benignas que desaparecem com a idade. Contudo, se forem muito frequentes e/ou prolongados e persistentes devem ser avaliados e podem precisar de tratamento.

O problema dos ecrãs à noite
O nosso cérebro está preparado para estar em ambiente escuro à noite como forma de “chamar o sono”. Pelo contrário, a luz dos ecrãs atrasa o sono e está associada a sono mais agitado nas crianças. Muitas pessoas de todas as idades habituam-se a adormecer com ecrãs porque distraem das suas ansiedades e preocupações. Mas não são um bom amigo do sono. A melhor forma de adormecer é no escuro, eventualmente com uma luz de presença fora do quarto. No princípio pode parecer estranho, mas depois torna-se um hábito e é tranquilo.

Quando consultar um especialista?
A boa notícia sobre os problemas do sono é que existem tratamentos e soluções para todas as idades. Tem um mau sono, sono não reparador? Comece por falar com o seu médico assistente ponderando depois a referenciação para uma Consulta do Sono.
No caso das crianças, devem ser avaliadas quando existem queixas persistentes com o sono ou o adormecer que não estão a melhorar com as medidas já implementadas. Também as crianças que apresentam sonolência diurna, hiperactividade e outros problemas de comportamento associados a um tempo inferior ao recomendado. De igual forma, todas as que ressonam de forma persistente devem ser avaliadas.
Os problemas do sono são frequentes mas tratáveis. Dormir bem não é nenhum luxo, é fundamental para ter um bom estado de saúde e uma boa qualidade de vida.

Filipe Glória Silva, Pediatra
Coordenador da Unidade de Neurodesenvolvimento e responsável pela Consulta do Sono Pediátrica da Unidade de Sono do Hospital CUF Sintra