José do Nascimento | “Mais uma história à volta de uma cerveja”

    Opinião

    Neste tempo em que se poderão ver muitas histórias que indicam que é ano de eleições e Sintra não é excepção, e enquanto a pandemia nos remete para um cauteloso recato, não vá o diabo tecê-las e o desconfinamento progressivo tenha que fazer marcha atrás, continua a ser tempo propício para no distanciamento social recomendado, reavivar memórias de tempos bem mais alegremente agitados.

    Tal como na minha última crónica neste espaço, fui encontrar mais uma, de entre muitas recordações, de uma fábrica de cervejas que existiu em Sintra, a para mim, saudosa Cergal, muito mal tratada, mas que em provas cegas, era normalmente vencedora.

    Permitam-me a mais uma história há volta de uma cerveja.

    Quando regressei de Espanha, vindo da aprendizagem dos segredos da cerveja, encontei uma Cergal mais aumentada do que quando a deixei meses antes, mas à boa maneira ibérica, com situações de montagem em significativo atraso quando estrategicamente, havia necessidade de pôr a cerveja no mercado logo no início do Verão, época alta deste tipo de bebidas.

    Sabendo-se que a cerveja só está pronta no mercado, cerca de um mês depois do fabrico do mosto ou brassagem,  a primeira fase de todo o processo que deveria ter início em meados de Maio, acabou por ser só quando o Junho terminava o primeiro terço de vida, o que fez com que o mercado só visse a primeira Cergal quando já o Verão reinava, mas comercialmente deveria ter acontecido ainda na Primavera.

    Os últimos dias na sala de fabrico foram infernais, se no piso de cima, o visível do exterior, tudo parecia pronto a funcionar, quem passasse em frente, já veria o brilho das caldeiras de cobre que sempre foram a sala de visitas de uma fábrica de cervejas. No piso de baixo, onde na realidade fica o coração da sala, com todas as tubagens, as válvulas e os motores, o caos era total.

    A equipa do catalão Boronat, bem se esforçava com uma quase inumana carga horária a deambular entre equipamentos por montar, andaimes que estavam por montar e outros ainda por desmontar e por onde deambulavam serralheiros, soldadores, electricistas e outros que nunca percebi a função, estes últimos, julgo, nunca terão percebido a minha função que não era mais que perceber como funcionava aquele coração da sala de brassagem que iria ser a minha morada durante alguns anos.

    Alguém disse que o arranque teria de ser no primeiro dia de Junho… não foi! Alguém afirmou que teria de ser uma semana depois… não foi! Foi três dias depois, 10 de Junho de 1972.

    Por essa altura, se todo o piso de baixo da sala de fabrico de mosto era um caos, o “rés-do-chão” da cuba-filtro seria a junção do resultado de todos os tornados, furacões e monções deste mundo, uma infinidade de tubagens meio escondidas entre estruturas que suportavam andaimes onde os montadores se movimentavam por vezes com alguma dificuldade. Por baixo daquele equipamento de filtragem de mosto, era o caos do caos.

    A cerca de uma semana do arranque, estava a testar os comandos do moinho húmido para depois poder ensinar o operador, teria que estar bem familiarizado com a máquina, em Espanha só operara com moinho a seco… de repente oiço alguém dizer:

    “Preciso de uma escada de mão.”

    Via-se uma ali a cerca de três metros por baixo da cuba-filtro, o necessitado da escada não foi de modas e puxou-a, de imediato ouve-se gritar:

    “Pongan la escalera, pongan la escalera!”

    Os gritos eram de aflição. Consegui divisar alguém precariamente pendurado num dos tubos, segurava-se com uma só mão enquanto a outra segurava um maçarico aceso… A escada foi reposta mas o soldador terá apanhado um valente susto.

    Quem também não gostou nada daquele episódio, foi o Boronat, o soldador era um dos seus dois filhos que faziam parte da sua equipa. A situação poderia ter sido hilariante não fora o risco de grave acidente.

    Durante aquela fase das montagens cheguei a pensar em acreditar numa entidade divina, só por milagre não houve acidente graves.

    José do Nascimento