José do Nascimento | “Uma História À Volta De Uma Cerveja”

Crónica

No início dos anos 70 do século XX existiu no concelho de Sintra, uma fábrica de cervejas de que orgulhei ser colaborador na área do fabrico de cerveja. Era a Cergal, Cervejas de Portugal onde à volta dela vivi histórias inolvidáveis e ganhei amigos inesquecíveis.

As peripécias vividas e os amigos, levaram-me em tempos a escrever alguns capítulos a que chamei de Histórias À Volta De Uma Cerveja. Recordo um desses capítulos dedicado a Albino Canas Mendes um dos amigos que viajou cedo demais, é sempre demasiado cedo para se perder um amigo.

A Cergal proporcionou-me coisas importantes para a minha vida, uma experiência inolvidável em Madrid, um encontro com todo o misticismo que envolve o fabrico de cerveja mas que de místico pouco tem a não ser a ciência, um vencimento razoável, o encontro com responsabilidades até aí não consideradas, mas sobretudo, os amigos que lá ganhei, algo que me ligará para sempre ao nome Cergal. Alguns foram-se perdendo pelo caminho, da malta de Espanha perdi o rasto ao Vieira de Sousa e ao tenente Coutinho.

Desde que saí das cervejas nada sei do Carlos Pereira e do João Almeida – espero que apareçam um dia – mas conservei um grupo de oito, presentemente reduzido a sete, por um prematuro desaparecimento de um dos elementos, o Albino Canas Mendes. É para ele este capítulo.

À iniciativa do Pedro Paes de Ramos renunciar aos refeitórios da fábrica Mahou, onde foi feita a nossa aprendizagem, foi seguida por mim de imediato e aos poucos por todos os outros. Fazíamos de refeitório um pequeno estabelecimento mais ou menos equivalente às bem lusitanas casas de pasto, onde se comia bastante bem e a um preço bem acessível e para nós que passámos a clientes diários, havia algumas deferências especiais.

Para mim, sem responsabilidades familiares, os custos daquela decisão em nada me preocupava, para o Pedro o dinheiro só servia para gastar, o Vieira de Sousa não tinha dificuldades económicas, o Carlos Pereira e o Almeida não se manifestavam… Manifestava-se o Canas Mendes que contava minuciosamente todas as moedas que gastava e foi ele que se manifestou contra as contas conjuntas para posteriormente se dividir por seis. Passámos às contas separadas com o Albino a tentar escolher os pratos mais baratos.

Num dos primeiros dias, tinha eu escolhido uma “paella” que ali faziam com excelente qualidade, o Albino, sempre nas encolhas, escolheu algo mais modesto. A minha refeição terá custado cerca de 40 pesetas que, como sempre paguei ao balcão. Já a caminho da fábrica o Albino perguntou-me:

Quanto pagaste?

Retirei 10 pesetas àquilo que realmente tinha pago. A minha resposta surpreendeu o Albino que resolveu fazer a mesma pergunta a todos os outros que perceberam a minha ideia e também reduziram os custos das suas refeições. O Albino exclamou:

Como é possível eu ter pago tanto, ou até mais que vocês!

Nasceu ali um autêntico “bulling” psicológico que durou alguns dias, com o Albino cada vez mais a tentar encolher as despesas de refeição, a comer pior, mas cada vez mais confuso com as nossas contas e convencido que o dono do estabelecimento o andava a enganar, mas sem encontrar coragem de o enfrentar.

Foi num fim-de-semana em que só nós dois ficámos em Madrid, que lhe confessei a manobra nascida de modo quase espontâneo e de que ele estava a ser vítima. Riu-se da sua própria ingenuidade, mas era assim o Albino, até de si próprio tinha a capacidade de se rir, foi sempre um homem puro que dificilmente acreditava na existência da mentira, mesmo a menos inocente.

Acabámos todos perdoados e o Albino passou a almoçar sem restrições. Também nunca fez restrições à amizade que me dedicou e que se foi cimentando ao longo dos anos, mesmo depois de já longe das “cervejeirices”.

Albino Canas Mendes abandonou cedo as nossas tertúlias, demasiado cedo.

Porra pá… tenho saudades tuas!

José do Nascimento