José do Nascimento | “Quando o dia de cinzas não era cinzento”

"Em confinamento sabe bem recordar aqueles Dias de Cinzas com melhores cores!"

Está cinzenta esta quarta feira de cinzas, dia em que encetei a escrita deste texto, que pretendo um pouco mais colorido que o dia, tarefa que não se antevê fácil, vindo na sequência de um carnaval cinzento, ao fim de um ano ainda mais cinzento.

Para os indefectíveis foliões dos vários carnavais, particulares ou oficiais, o primeiro dia de Entrudo, foi sempre um dia cinzento, para eles representa o primeiro dia de luto à época em que “foi Carnaval e nada pareceu mal!

Cabe aqui ressalvar que a quarta-feira de cinzas tem um significado religioso para a Igreja Católica Romana, com o celebrante da eucaristia a fazer uma prece que se pode resumir como “eras pó, a pó voltarás” e a fazer um sinal da cruz na testa dos crentes com as cinzas dos ramos queimados, do Domingo de Ramos do ano anterior.

Nunca tendo sido galhofeiro militante, sempre fui demasiado reservado para isso, aqui e ali, entrei em tímidas folias, muito mais como espectador que como actor, no entanto, a quarta-feira de cinzas sempre me cheirou a um luto pela morte de um carnaval em que sempre desejei ter tido mil e uma aventuras, mas mil ficaram, invariavelmente, por fazer.

Um tanto inesperadamente, entre 1972 e 1982, vivi carnavais diferentes… Este cinzento confinamento tem convidado a passar alguns momentos do dia a trazer para a frente algumas memória, muitas bem coloridas e da década atrás referida, as cores e os sons dessas recordações vivem como se as estivesse a viver agora… Aquilo para mim foi a folia mais louca, mais sentida e mais vivida que poderia ter algum dia sonhado.

Um tanto ou quanto inesperadamente, logo após me ter visto livre da obrigatoriedade do cinzento serviço militar obrigatório, vi-me envolvido com um grupo de amigos de infância que se propôs levar à cena, uma revista carnavalesca na Sociedade União Sintrense (SUS).

Até ali nunca tinha sonhado ser actor e muito menos autor, durante dez anos experimentei as duas facetas a que cheguei a juntar a função de encenador. Todo o grupo teve a noção que divertiu muita gente nas três ou quatro sessões que anualmente apresentámos, mas ninguém se divertia mais que nós, enquanto os espectadores tinham um espectáculo de cerca de duas horas e meia, nós tínhamos todo o período de Novembro até ao início do Entrudo para puro divertimento, normalmente três meses de risota.

(…) “cinzentas personalidades nos questionaram se costumávamos enviar os nossos textos para “exame prévio”, nome que Marcelo Caetano encontrou para colorir o que não passava de “censura”

Revista carnavalesca na Sociedade União Sintrense (SUS)

Rapidamente o teatro da SUS daquela época conheceu o êxito, praticamente só local, mas a sala enchia, nas duas ou três sessões, nunca houve plateia às moscas. Os temas vinham um pouco na linha das velhas cegadas carnavalescas, onde a crítica social e o apontar os focos para uma ou outra personalidade personalidade, aguçava a curiosidade e a pergunta “De quem vão eles falar este ano?”, algo que ajudava esgotar o primeiro dos espectáculos previstos com alguma ansiedade. Depois vinha a publicidade boca a boca, para fazer encher os seguintes.

Além das tentativas de crítica social havia também alusões do tipo “Pela idade é necessário substituir o Pedro Infante Dias Esteves (sigla PIDE) pela Dolores Gonçalves Silva (sigla DGS) para melhor garantia de limpeza e segurança” alusões essas que em conjunto com outras, por vezes o foco eram actividades camarárias, levaram a sermos “convidados” a uma reunião na Câmara Municipal de Sintra, onde cinzentas personalidades nos questionaram se costumávamos enviar os nossos textos para “exame prévio”, nome que Marcelo Caetano encontrou para colorir o que não passava de “censura”.

Não colheu o nosso argumento que aquele teatrinho não passava de uma brincadeirinha de carnaval e exigiram-nos que lhes entregássemos os textos que queríamos ver representados. Não cabia à Câmara exigir qualquer exame prévio, seria coisa do foro policial, mas foi evidente a tentativa de intimidação e o querer saber previamente se alguma individualidade camarária seria visada naquele ano.

(…) “antes de Abril ter acontecido, a quarta-feira de cinzas, para o grupo, nada tinha de cinzenta, era o dia do balanço daquilo que tínhamos produzido e esse balanço conseguiu ser sempre bem colorido

Na altura da referida reunião, não teríamos nem metade do espetáculo escrito e numa colorida decisão, entregámos alguns dos textos mais inócuos dos dois carnavais anteriores. Terão ficado satisfeitos com a nossa boa vontade e nós, embora com alguma natural apreensão, conseguimos, pelo terceiro ano consecutivo, levar cor ao carnaval da SUS… Era o ano de 1974. Mês e meio depois aconteceu Abril!

Mesmo antes de Abril ter acontecido, a quarta-feira de cinzas, para o grupo, nada tinha de cinzenta, era o dia do balanço daquilo que tínhamos produzido e esse balanço conseguiu ser sempre bem colorido.

Quase quarenta anos depois das coloridas quartas-feiras de cinzas, hoje, ao fim de um ano bem cinzento, o Dia de Cinzas ainda parece mais cinzento…

Em confinamento sabe bem recordar aqueles Dias de Cinzas com melhores cores!


José do Nascimento