Pedro Gouveia Alves | O que faz falta

OPINIÃO

Se, num cenário adverso, os empresários portugueses conseguiram assinaláveis progressos, o que lhes falta para crescerem e para se afirmarem nos mercados internacionais? Falta a política fiscal.

Os sinais que nos vão chegando apontam para que o ano de 2020 nos roube o pouco sorriso que íamos conservando nos nossos rostos. A propósito do final das férias de verão, e da rentrée que se anuncia, é habitual perguntarmos mutuamente como correram as férias e se estamos mais descansados para enfrentar os desafios no regresso ao quotidiano.

Os que me conhecem, sabem que utilizo uma expressão: “não me lembro de ter um mês de agosto sereno na sua plenitude”. Agosto teima em contrariar o descanso. A inquietude ganha balanço, e estende-se pelas vindimas até ao estalar das primeiras castanhas assadas. Mas, por que raio a rentrée é logo uma espécie de choque elétrico que nos sobe pela espinal medula? Fico a pensar se é do facto de os profissionais mais experientes irem todos de férias e deixarem os juniores aos comandos, ou se é apenas pela razão de todo um coletivo regressar “à carga”.

A inversão da curva de taxas de juro nos Estados Unidos, precisamente a meio do mês de agosto, comparando as maturidades de 10 anos com as de dois anos (pela primeira vez desde 2005), veio reforçar a tendência que já se vinha verificando desde março com a inversão na maturidade mais curta, de três meses. Sentimento antecipado que, por certo veio culminar no mais recente corte de taxas anunciado pela Reserva Federal num quarto de ponto, o que acontece pela primeira vez desde a queda do Lehman Brothers (quando? Lá está, no verão de 2008). E isto sucede quando os agentes económicos antecipam que a inflação não irá ser superior à atual porque as expetativas de crescimento económico se degradam.

Não é preciso ter dotes de adivinhação para se prever um clima de maior instabilidade na economia global. Basta acompanhar a gestão das relações internacionais que os grandes blocos geopolíticos estão a desenvolver. Os Estados Unidos, a tentarem adiar o crescimento económico da China, através de um «braço de ferro» comercial, são a faceta mais visível. Mas, a acrescer, há outros ingredientes: tensão no Médio Oriente, pressão sobre Vladimir Putin na Rússia e a latente corrida ao armamento nos adormecidos blocos da ex-guerra fria, a novela do Brexit, só para citar os mais mediáticos.

Outros dados estão em cima da mesa que elevam o caráter exógeno da incerteza, como a crise climática que não conhece pátria, e que é tão carente de uma concertação global, infelizmente cada vez mais longínqua.

Chegados à nossa quase milenar pequena economia aberta ao exterior, só um distraído acha que tudo isto pode não ser motivo para reflexão. Se as economias nossas “clientes” entrarem em dificuldades, nós entramos em dificuldades. E, quando as dificuldades batem à porta, é enorme a tentação de relançar programas de investimentos públicos. Caso para perguntar, quando é que já vimos isto?

Mas, como estamos agora em comparação com o início do anterior ciclo económico negativo? Estamos com taxas de juro estagnadas em terreno nulo ou negativo e, no conjunto dos agentes económicos, com uma economia mais desalavancada: as empresas apresentam uma dívida total de 95,6% sobre o Produto Interno Bruto (PIB), quando o máximo da década se registou em 2012 (126,7%), e os particulares atingiram os 69,1%, face ao máximo de 94,7% em 2010.

Segundo dados publicados pelo Banco de Portugal, o setor financeiro apresenta um rácio de transformação de depósitos em crédito em linha com a tendência de desalavancagem dos agentes económicos: de 87,7% no primeiro trimestre de 2019, quando em 2010 esse indicador era de uns expressivos 150,6%, muito expostos então ao setor da Construção e Promoção Imobiliária.

Se fizermos um check up à economia de hoje, os marcadores que estavam, na sua maioria, fora dos intervalos de vida saudável, encontram-se agora em níveis que nos permitem ter esperança: a Indústria Transformadora é agora o setor com o maior peso de endividamento (18%), seguido do Comércio (16%), e só depois vem a Construção (13%).

O curioso é verificar que foi a Indústria que mais viu reduzido o seu rácio de endividamento (de 0,65 do ativo para 0,59) no espaço de oito anos. Globalmente, as PME apresentam hoje um rácio de autonomia financeira superior ao do início da década (36,5% no início de 2019 face a 26,9% em 2009), o que quer dizer que estão paulatinamente a robustecer a sua capacidade de autofinanciamento, mesmo num período de política monetária acomodatícia, mas ainda longe de economias como a espanhola, que apresenta rácios de autonomia financeira superiores a 45%.

O Investimento representa hoje 18,1% do total do PIB, quando atingiu níveis inferiores a 15% na primeira metade de 2013. Mas, ainda longe do valor médio de 21,2% dos países da União Europeia, ou dos valores superiores a 25% que se verificam na República Checa, Suécia ou Estónia.

Na presença do génio da lâmpada, formularia o desejo de mais uns anos de redução da dívida pública para que possamos ter um rápido acesso a instrumentos orçamentais que nos permita voltar ao comando de opções estratégicas. Opções que passem por garantir o óbvio. Que, afinal, o futuro do país é mesmo para jovens. Isso só se consegue com emprego qualificado. E o emprego qualificado só se consegue com empresas que invistam na expansão da sua atividade. E essa expansão só se conseguem com uma robusta base de capital próprio nas empresas, que permita uma alavancagem segura. E uma base empresarial sólida só se consegue com capacidade competitiva.

Se, num cenário adverso, os empresários portugueses conseguiram assinaláveis progressos, o que lhes falta para crescerem e para se afirmarem nos mercados internacionais? Temos liquidez, temos empresas que acumularam capital próprio e que reduziram o endividamento, temos um sistema financeiro mais enxuto de ativos problemáticos, temos empresários com vontade de investir, temos um país aberto ao exterior e ao investimento direto estrangeiro.

Então, o que faz falta?

Falta a política fiscal. Chegou a hora da política fiscal das empresas. Mas, agora a sério. Competitividade traduz-se em crescimento, em mais emprego qualificado que paga melhores salários. Os empresários não “levantarão cabelo” com uma das mais altas tributações da OCDE (que, considerando todos os encargos, pode chegar a 31,5% de imposto direto, baseando-se em escalões de lucro tributável, o que desde logo indicia uma enorme ausência de estratégia para o desenvolvimento económico do país, pois parte do princípio que os maiores lucros provêm de empresas capital intensivo que não geram emprego e que expatriam os resultados, quando esses fenómenos podem ser evitados de outras formas).

Acresce a atual dimensão da Taxa Social Única para as empresas, que representa 23,75% do salário de cada trabalhador. Sejamos práticos (e sérios): todos sabemos que não há pequenas economias abertas no espaço da União Europeia com estes encargos. Há vários países com taxas de IRC inferiores a 15% e sabemos que os resultados práticos são bastante positivos para os seus cidadãos.

O que faz falta é animar as empresas, é o que faz falta.

Pedro Gouveia Alves
Economista. Presidente do Montepio Crédito.

[Artigo de Opinião publicado no Jornal Económico e no Sintra Notícias]