Fernando Morais Gomes | Zeca, Quando a Revolução era em Vinil

“Salva-se hoje a memória, o orgulho de ter tentado e a certeza de nunca ter desistido”

Se fosse vivo, Zeca Afonso faria hoje 90 anos. Zeca, tão distante e tão perto. A voz dum povo revolto e revoltado, num tempo em que as utopias eram reais. Várias vezes o vi, sempre com aquele ar de quem estava em casa a cantar para amigos, e todo um povo plasmado em letras amalgamadas atrás da mordaça que alguns quiseram impor e outros não deixaram calar.

Recordo o Zeca do Orfeão Académico e da Tuna, com Adriano, António Portugal, Manuel Alegre, José Niza ou Rui Pato. Mas revejo com emoção sobretudo os gritos serenos que a sua musica sempre provocou, dos Vampiros às Cantigas do Maio, do Venham mais Cinco ou dos Filhos da Madrugada a Trás Outro Amigo Também.

Se a resistência à ditadura teve ícones na música, Zeca foi o maior deles, dum naipe onde se destacaram Sérgio Godinho, José Mário Branco, Luís Cília ou Francisco Fanhais.

De certo modo, nós que fomos filhos da madrugada respondemos à chamada, de sangue na guelra para as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis, pois só salvando o mundo nos poderíamos salvar.

Salva-se hoje a memória, o orgulho de ter tentado e a certeza de nunca ter desistido. Apesar de tudo, a democracia, o menos mau dos regimes, e a Liberdade, esse bem sagrado, aí estão, imperfeitas, mas desafiadoras por isso mesmo.

Atrás de tempo, tempo vem, muitos anos passaram, valeu a pena e Zeca contempla, do panteão da memória. O som dos Vampiros, metálico e dolente, soa agora como música de fundo enquanto desfio este texto.

Hoje como ontem, o tempo ainda é feito de mudança, e é lutando pela mudança, pelo dialético desassossego das mentes e por um mundo onde se acrescente e construa que melhor celebraremos Zeca Afonso, a voz gutural dum Portugal cinzento com cujo uivo magistral se quebraram grilhões.

Fernando Morais Gomes,
Fundador da Alagamares e do Núcleo do Sporting Clube de Portugal, em Sintra

“Salva-se hoje a memória, o orgulho de ter tentado e a certeza de nunca ter desistido”