Maurício Rodrigues | Descentralização adiada e a conta-gotas

A Lei n.º 50/2018 de 16 de agosto, que estabelece o quadro da transferência de competências de diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, concretizando os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local, foi aprovada no dia 18 de julho de 2018, com os votos favoráveis do PS e PSD e abstenção do CDS.

O CDS sempre foi favorável à descentralização e ao Municipalismo, mas discorda da forma como todo o processo está a ser conduzido, nomeadamente, quanto ao teor dos decretos setoriais sobre as competências a transferir, entrada em vigor dos mesmos, serviços a manter ou a eliminar e recursos financeiros.

O processo de transferência de competências inicia-se em 2019 e será gradual, considerando-se que esteja completo até 1 de janeiro de 2021, acompanhando o atual mandato autárquico.

As áreas onde as autarquias vão ter competências próprias, são diversas: educação; ação social; saúde; proteção civil; cultura; património; habitação; áreas portuário-marítimas e áreas urbanas de desenvolvimento turístico e económico não afetas à atividade portuária; praias marítimas, fluviais e lacustres; informação cadastral, gestão florestal e áreas protegidas; transportes e vias de comunicação; estruturas de atendimento ao cidadão; policiamento de proximidade; proteção e saúde animal; segurança dos alimentos; segurança contra incêndios; estacionamento público; e modalidades afins de jogos de fortuna e azar e outras formas de jogo; delegação de competências nos órgãos das freguesias; e justiça.

Algumas destas competências já são desempenhadas pelas autarquias ao abrigo de contratos interadministrativos, assim como de acordos de execução, que caducam no momento em que municípios, freguesias e entidades intermunicipais assumam, no âmbito desta nova lei, as competências previstas.

A aplicação concreta desta Lei-quadro está dependente da aprovação dos respetivos diplomas legais de âmbito setorial, que vão identificar cada área e a forma de afetação dos respetivos recursos, mas também, quando necessário, os mecanismos e termos da transição dos recursos humanos afetos ao exercício de cada competência, tendo já sido publicados os primeiros diplomas setoriais, são eles, os Decretos-Lei n.º 97/2018 e 98/2018, de 27 de novembro, Decretos-Lei n.º 99/2018 e 100/2018, de 28 de novembro, e Decretos-Lei n.º 101/2018, 102/2018, 103/2018, 104/2018, 105/2018, 106/2018 e 107/2018 de 29 de novembro, aguardando-se a publicação dos restantes.

No entanto, o processo de descentralização conduzido pelo atual governo, tem-se traduzido numa grande trapalhada, com avanços e recuos, prazos sistematicamente prorrogados, indefinições e sem ter sido precedido de uma análise e estudos profundos que uma reforma desta natureza não poderia deixar de suscitar.

O processo de descentralização envolve três pilares fundamentais e complementares entre si: a Lei-quadro (Lei n.º 50/2018 de 16 de agosto); os diplomas setoriais; e a lei das finanças locais, que deveriam ser discutidos, estudados, desenvolvidos e aprovados simultaneamente, de acordo com as boas práticas da legística.

Uma vez que o Governo não apresentou qualquer relatório sobre a transferência e delegações de competências levadas a cabo neste últimos anos, revelando as principais fragilidades e as principais virtudes, que muitas das competências que pretendem transferir não foram discutidas ou analisadas com este ou qualquer outro município e que o processo tem vindo a ser desenvolvido a conta-gotas, não é razoável a aceitação destas transferências para o município no presente ano.

Neste sentido, o CDS entende que a proposta tendente à prolação de não aceitação da transferência das competências previstas nos diversos normativos concretizadores do quadro legal consagrado na Lei n.º 50/2018, assim como de não intenção do exercício dessas competências, para o ano de 2019, subscrita pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Sintra é sensata e prudente, também o sendo, a constituição de um Grupo de Missão com vista a avaliar a exequibilidade do exercício das novas competências.

Sendo as autarquias locais muito heterogéneas a transferência das novas competências devem ser objeto de monitorização permanente e transparente da qualidade e desempenho do serviço público, que avalie se os recursos financeiros de cada área de competências são os adequados.

O Grupo de Missão deve fazer uma avaliação exaustiva à capacidade efetiva do município no cumprimento de novas competências; deve ser exigida uma definição concreta e precisa das áreas a transferir; deve ficar devidamente assegurado que o município dispõe de todos os recursos, financeiros, materiais e humanos, necessários ao pleno cumprimento dessas novas funções; salvaguardar que o exercício pelo município das novas competências descentralizadas não diminui a capacidade de execução das competências tradicionais que lhe estavam atribuídas, nem da respetiva cabimentação; garantir que ao exercício das novas competências descentralizadas vai corresponder uma melhoria do serviço público prestado aos munícipes.

Só com o resultado dos estudos e pareceres justificativos do impacto efetivo destas novas atribuições, na qualidade de prestação de serviços públicos aos munícipes, saberemos se estamos perante uma descentralização do poder de decisão, ou perante a mera transformação da Câmara Municipal de Sintra em serviços de manutenção local ou tarefeiros de direções gerais e de institutos públicos, o tempo o dirá.

Uma coisa é descentralização, outra é, a desresponsabilização sobre funções que cabem ao Estado Central e que só este as deve prestar.

Dúvidas não existirão que se as diversas áreas propostas de competências a descentralizar forem transferidas na sua globalidade para os municípios, a garantia de qualidade no acesso aos serviços públicos, a coesão territorial e a garantia da universalidade e da igualdade de oportunidades no acesso aos serviços públicos, a eficiência e a eficácia da gestão pública, a garantia da transferência para as autarquias locais dos recursos financeiros, humanos e patrimoniais adequados e a estabilidade de financiamento no exercício das atribuições cometidas, estarão em risco.

Em 1 de janeiro de 2021, data em que se consideram transferidas para as autarquias locais e entidades intermunicipais todas as competências previstas na Lei-quadro e já não pode ser recusada a transferência de competências, teremos um País a velocidades díspares, potenciando-se o agravamento das assimetrias entre autarquias locais e o alheamento do Estado de funções próprias nas quais é determinante a sua ação, especialmente sopesando a grandeza necessária para o êxito de intervenções públicas.  

Maurício Rodrigues, presidente da Concelhia de Sintra do CDS-PP