Fernando Morais Gomes | Viana da Mota em Galamares – Uma ‘Estória’ Minha

(...) "Viana da Mota ensaiou alguns andamentos, possuído pelo eco da sala. Escolheu as “Cenas da Montanha” para a abertura, que Von Bullow achava ser um dos seus temas mais conseguidos, e depois parte da “Evocação dos Lusíadas”. No fim, e se a luz não falhasse, “A Pátria”, a sua imagem de marca."

Olhar absorto, dedos alvos, a tez altiva. Na pequena sala decorada com pinturas campestres e tectos com flores estampadas em papel, ecoavam os acordes firmes e cristalinos do piano solitário, melódico e obediente.

No salão de Galamares, que o visconde de Monserrate mandara construir, Viana da Mota ensaiava para o concerto organizado para angariar verbas para electrificar a estrada para Colares. A comissão de melhoramentos pedira, e com prazer anuía.

Já à beira dos sessenta e cinco, desfiando o piano com o transe de um jovem apaixonado, ensaiava as peças que nessa noite tocaria em prol da luz, tão necessária ao progresso. Brincando com as notas, familiares e cúmplices, ia recordando dias já distantes, quando vindo de S. Tomé aportara em Colares, húmida e silenciosa, palco da sua infância, e os concertos no Trindade, ainda jovem e promissor pianista. Recordava acima de tudo a felicidade do dia em que a condessa Elise lhe anunciou a decisão de pagar os seus estudos com Scharwenka, em Berlim. Nunca esqueceu a emoção do momento, no chalé da Pena, e mais tarde a récita, onde, ainda imberbe, perante D. Fernando e a condessa d’Edla tocara “Au bord du lac de Pena”, que com treze anos compusera em sua honra. A gratidão de um artista só com arte deve ser paga, pensou na altura.

Pela tarde chegou um gerador da Sintra-Atlântico, para iluminar a sala para o concerto, as famílias mais abastadas pagariam. Enlevado, Viana da Mota ensaiou alguns andamentos, possuído pelo eco da sala. Escolheu as “Cenas da Montanha” para a abertura, que Von Bullow achava ser um dos seus temas mais conseguidos, e depois parte da “Evocação dos Lusíadas”. No fim, e se a luz não falhasse, “A Pátria”, a sua imagem de marca.

Viana da Mota

Era 15 de Setembro, o Outono lentamente ia devolvendo os veraneantes à capital, havia risco de a sala não encher, agoirou Guilherme Oram. Viana da Mota, porém, adorava o desafio. Que viessem dois, mas bons, melhor que trinta a bocejar. A sala encheu, afinal, senhores em fatos impecáveis, senhoras com os melhores chapéus, os homens da Sintra-Atlântico circunspectos junto ao gerador, a cultura coligando-se com o progresso. Cumprimentos, salamaleques, postas as tosses da praxe, lá se iniciou a função.

Saudando com uma simples vénia, José Viana da Mota saboreou o silêncio expectante e depois dum momento sepulcral, qual guerreiro esperando a fera, espalhou o néctar inebriante das suas teclas redentoras sobre o cineteatro orgulhoso, um São Carlos de aldeia, nem por isso menos vibrante e atento. Toda a família do visconde assistia, bem como Eduardo Gaio e a esposa, pianista promissora, os Farias, da casa do visconde, bombeiros, autoridades. Desconfiado, o povo espreitava, pela coxia.

Nessa noite luminosa e mágica, os pássaros na serra calaram o chilreio, os sapos nos charcos abafaram os coaxos, o som hipnotizado e hipnotizador do piano enfeitiçado atravessou o vale e Monserrate, agitando as acácias e entorpecendo as almas, e Galamares, em silêncio, ganhava um pedaço do paraíso.

Em Lisboa, já passados os oitenta, a velha condessa d’Edla tomava chá e cerrava os olhos, como se o som do piano do rapaz que um dia mandara para Berlim lhe chegasse, perfumado pela brisa da noite.

 

Fernando Morais Gomes,
Fundador da Alagamares e do Núcleo do Sporting de Sintra