Vitor Serrão | Um tríptico de Diogo de Contreiras na Sintra Rural

(...) "E não é que, com total surpresa, nos achamos perante uma excelente obra de DIOGO DE CONTREIRAS, um pintor activo entre 1521 e 1563 e considerado um dos mais importantes mestres lisboetas do segundo terço do século XVI?"

A Igreja Matriz de São João das Lampas, no concelho de Sintra, é uma preciosidade histórico-artística, justamente classificada como Imóvel de Interesse Público dada a riqueza dos seus acervos.

Trata-se de um testemunho de fusão entre o vocabulário rural (o ‘vernáculo saloio’) e vertentes de erudição artística, as quais ajudaram a criar uma espécie de convivência assaz original. Tal explica a presença de obras eruditas, devidas a mestres da corte, caso do tríptico agora identificado.

A história conta-se assim: guardava-se numa dependência da igreja um tríptico com volantes de fechar, grosseiramente repintado; estava, meio esquecido, na Capela do Espírito Santo, situada no terreiro da igreja, da parte sul; trouxemo-lo para a matriz, por razões de resguardo; e sempre pareceu ser um trabalho regional, de bitola subalterna, com valor exclusivamente iconográfico.

Diogo de Contreiras, tríptico destinado originariamente ao antigo altar-mor da Capela do Espírito Santo em São João das Lampas, hoje na igreja matriz da localidade rural sintrense. Cerca de 1540-1550. Uma encomenda da Colegiada de São Martinho ao pintor? Algum benfeitor local? Não se sabe…

Ora a boa atenção da fábrica da paróquia para com o seu património permitiu que esta peça fosse alvo, recentemente, de um restauro que devolveu a pintura às suas qualidades primitivas. E não é que, com total surpresa, nos achamos perante uma excelente obra de DIOGO DE CONTREIRAS, um pintor activo entre 1521 e 1563 e considerado um dos mais importantes mestres lisboetas do segundo terço do século XVI? A limpeza do tríptico, que representa ao centro o ‘Pentecostes’ (Descida do Espírito Santo sobre a Virgem e os Apóstolo’) e nos volantes ‘Santo António de Lisboa’ e ‘São Francisco de Assis’, permite apreciar o estilo, a paleta, os repertórios formais, o bom desenho, e as qualidades pessoalizadas desse nome maior da chamada ‘primeira geração maneirista’.

SANTO ANTÓNIO, de Diogo de Contreiras, pormenor do tríptico destinado originariamente ao antigo altar-mor da Capela do Espírito Santo em São João das Lampas, hoje na igreja matriz da localidade rural sintrense. Cerca de 1540-1550. Uma encomenda da Colegiada de São Martinho ao pintor? Algum benfeitor local? Não se sabe…

Trata-se de algo surpreendente, pois o repinte grosseiro não faria imaginar que, subjacente a essas frustes camadas, existisse pintura de tão apreciável merecimento ! Tudo aponta para os anos de cerca de 1540-1550: existem afinidades pronunciadas com outras peças de Contreiras dessa mesma época, como as tábuas de São Quintino, de Almoster, de Porto da Luz ou de São Martinho de Sintra.

O pintor, aliás, tinha casas na vila de Sintra, como revelou o seu testamento de 1563 (publicado por João Simões e por mim), e a colegiada de São Martinho de Sintra era a entidade tutelar de São João das Lampas, o que pode explicar a encomenda ao pintor,ou seja, ao mesmo tempo que fazia os painéis para a igreja de São Martinho teria pintado este triptico para a Capela do Espírito Santo em São João das Lampas (importa explorar essa hipótese).

A actividade de Diogo de Contreiras para a igreja de São João das Lampas já fora, aliás, referenciada por causa de uma tábua do ‘Baptismo’, ainda existente, mas de carácter

Diogo de Contreiras: pormenolr do tríptico destinado originariamente ao antigo altar-mor da Capela do Espírito Santo em São João das Lampas, hoje na igreja matriz da localidade rural sintrense. Cerca de 1540-1550. Uma encomenda da Colegiada de São Martinho ao pintor? Algum benfeitor local? Não se sabe…

oficinal (sem a qualidade exímia do tríptico, é obra, provavelmente, de um anónimo seguidor). Outro aspecto a destacar: não existem em Portugal trípticos de fechar, salvo os flamengos, oriundos de Bruges, Gand ou Antuérpia; por isso, este tríptico também é valioso por ter essa morfologia. Já maneirista, revela ainda um vincado gosto flamengo: ora, quem em São João das Lampas, no tempo de D. João III, teria essas valências estéticas para escolher um retábulo com volantes de fechar para a pequena Capela do Espírito Santo ? Ainda se ignora…

Os saberes sobre Contreiras, acumulados desde um primeiro estudo de Martin Soria (The S. Quintino Master, 1957) aos mais recentes e fundamentais contributos de Joaquim Oliveira Caetano, seguidos dos de Raul Sampaio Lopes, Pedro Flor, Francisco Bilou, e nós próprios, vêm-se assim reforçados em substância. Trata-se de uma identificação da maior importância para a História da Arte: o surgimento deste tríptico, da melhor fase evolutiva do mestre Diogo de Contreiras, vem enriquecer a já de si notável igreja matriz da localidade rural, que impõe, pela riqueza e diversidade dos seus acervos, uma longa visita de estudo.

Portal manuelino da igreja matriz de São João das Lampas, c. 1500-1510, com azulejaria barroca de 1732 em torno

A igreja, além dos vestígios medievais, preserva um portal manuelino de excelente lavor, bem como capitéis, pias lavradas, azulejos hispano-mouriscos e outros elementos de uma campanha de início do século XVI, bem como azulejos polícromos datados de 1666-67 e um tecto apainelado com pintura de brutescos dessa mesma campanha barroca e, ainda, uma série de outros interesses de visita, sem esquecer o monumento alusivo aos Cavadores Rurais (1983), de Pedro Anjos Teixeira.

Enquanto técnico dos serviços culturais da Câmara Municipal de Sintra nos anos 80 do século passado, estudei muito esta igreja com José Cardim Ribeiro, e com Beleza Moreira, Jorge Baptista, Carlos Manique e o Padre António Ambrósio, entre outros, analisando as suas valências históricas, arqueológicas e artísticas e as remanescências do antigo arquivo paroquial, estudos esses de que resultaram novos saberes e diversas publicações (todavia, nem sempre citados nas descrições oficiais, por omissão ou negligência de quem as elaborou..). Além das identificações precisas que se referem atrás, descobriram-se também as estelas sepulcrais, hoje expostas no próximo Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, outro lugar-referência para uma visita ao património rural sintrense.

São valores a conhecer absolutamente!

Vitor Serrão, Professor Universitário