José do Nascimento | Viver no meio da pandemia

Veio da China, mas obrigou à proliferação de expressões do léxico português como, “estado de emergência, distanciamento social e confinamento”, e como é normal nas crises graves de um país ou região, surge sempre a expressão “bens de primeira necessidade”.

Há quem resuma como bens de primeira necessidade ao básico, ou seja, comida, roupa, água e luz. Sem dúvida que estes quatro bens são comuns e necessários a todos e sem excepção, mas há outros bens que podem ser específicos a cada um de nós, há quem necessite de óculos, aparelhos auditivos, ou até uma simples bengala e outros não. Só estes exemplos servem para exemplificar que não se pode resumir ao básico o conceito de “bens de primeira necessidade”.

Existem ainda outros bens que sem os quais a vida pode tornar-se extremamente difícil, e como exemplo, pode-se afirmar que há quem não prescinda de um livro, de música ou rever determinados filmes em DVD. No meu caso pessoal, não morrendo pela sua falta, convivo muito mal sem a rádio, o computador onde vou escrevendo as minhas histórias e, por último, os livros. Dispenso a televisão.

A leitura apresenta-se como um excelente meio para excitar a imaginação servindo de meio privilegiado para melhor passar as horas de confinamento. O livro que no momento me está a acompanhar na quarentena, trata-se de “O Quinto Império” de António Botto Quintans que aborda a presença dos Templários na região Oeste do país. Paralelamente tenho sempre um livro de poesia à mão, para o abrir aleatoriamente e descansar a mente no poema que, no acaso do folhear, me aparece. Neste momento tenho Manuel Alegre e a escolha não foi à toa, que melhor “compagnon de route” para celebrar Abril?

Também de vez em quando pego nas excelentes “Histórias com Sintra Dentro” de Fernando Morais Gomes que também estou a ler no mesmo modo que faço incursões à poesia, se a história que calhou, ao folhear do livro, ainda não a tinha sido  lida, excelente, caso seja já uma já visitada, há sempre textos que valem a pena reler.

O estado de emergência trouxe também as recomendações de que as saídas de casa se deviam limitar à aquisição dos bens necessários, pequenos passeios higiénicos ou passear o cão. Infelizmente não tenho cão que no momento poderia constituir uma fonte extra de rendimento, alugando-o a quem dele necessitasse e assim ter um bom pretexto para as saídas de casa. O cão agradeceria e a minha conta bancária também.

“O meu médico afirma-me que é mais importante a minha caminhada diária que o medicamento, que até posso esquecer de o tomar desde que não exagere nos esquecimentos”

Quando ao passeio higiénico, tratando-se de um conceito um bocado vago, a sua necessidade não será igual para todos, pois o vírus, que no seu “ataque”, não descrimina classes sociais, vai tudo a eito e por igual, já o confinamento não é igual para todos, é bem diferente viver num simples T1 no Cacém, de que passar os dias numa mansão com vista para o mar… O passeio na pequena varanda do T1 ou até ao fim da rua, na “floresta de betão armado”, é bem diferente do passeio nos jardins da mansão.

Começam a aparecer alguns, penso que especialistas, a aconselharem o exercício físico que, no meu conceito, poderá ser também um exercício essencial à manutenção da sanidade mental. É nesta área que, na ideia de algumas entidades, estarão alguns dos meus “pecados” no cumprimento das regras do estado de emergência. A zelar pela minha saúde, o meu médico afirma-me que é mais importante a minha caminhada diária que o medicamento, que até posso esquecer de o tomar desde que não exagere nos esquecimentos. A zelar pela minha saúde e de todos os outros, o estado de emergência determina isolamento social. Como conciliar as duas recomendações?

Em Sintra e arredores, não é difícil cruzar os dois conceitos, então, sempre que posso, escolho itinerários para as minhas caminhadas onde quase só por milagre me cruzo com alguém, e se isso acontecer, há sempre espaço para cumprir as distâncias sociais aconselhadas e às quais não transijo, mais uma vez pela minha saúde.

O forno de lenha que existe cá em casa normalmente só era utilizado em dias de festa

Não vivendo na mansão nem no T1 do Cacém, tenho matos e pinhais próximos onde as minhas caminhadas respeitam o recomendado distanciamento social, locais onde por vezes faço um exercício extra que se trata de apanhar lenha, antigo hábito rural onde o lume desses madeiros, tinha a finalidade de aquecer as casas e cozinhar os alimentos.

A cozinha é, desde sempre, um dos locais que prefiro na casa, onde mais tempo passo a recriar receitas tradicionais, torna-las ao meu jeito e inventando outras.

O forno de lenha que existe cá em casa, normalmente só era utilizado em dias de festa, hoje e durante esta quarentena passou a ser utilizado com muito mais frequência e é para ele a lenha que apanho durante algumas das caminhadas.

O assado ficou pronto ao fim de duas horas e meia, mesmo na hora de colocar ponto final nesta crónica

Hoje, antes de começar a escrever esta crónica, pus lenha no forno, ateei o lume e alimentando a chama de quando em quando, ficou pronto para o assado ao fim de 35 minutos, tratou-se de um generoso naco de entrecosto de porco.

Com o forno fechado, iniciei a escrita desta crónica, só interrompida de vez em quando para verificar o assado que ficou pronto ao fim de duas horas e meia, mesmo na hora de colocar ponto final nesta crónica.

E assim, contornando o que poderia tornar-se um pandemónio de sensações e emoções vou vivendo no meio da pandemia.


José do Nascimento