Fernando Morais Gomes | O Grande Negócio

    Grande negócio, comentou Guedes do Amaral com o Gregório das queijadas, toda a sua produção de conservas de 1924 fora comprada por uns industriais de Lisboa, dinheiro vivo e na hora, coisa rara. Poderia agora expandir o negócio em Albarraque, duns toscos pavilhões agrícolas fizera uma unidade industrial com setenta operários, a somar ao contrato para o Brasil, uns terrenos do Antunes, na Portela, estavam debaixo de olho. Alfredo Pinto, director do Semana de Sintra juntou-se ao grupo na Piriquita, vindo da Estefânea.

    – Então quer dizer que é coisa que se veja? – sondou o Júlio, o dono da pastelaria, servindo uma ginjinha com elas, os travesseiros viriam a seguir, quentinhos.

    – Foi um achado, amigo Júlio. Recebi um estafeta lá no escritório, da parte duns engenheiros de Lisboa, queriam uma reunião. Estranhei, nunca tinha ouvido falar neles, mas negócio é negócio e lá fui, olhe, aquele palacete do Menino de Ouro, em Lisboa, está a ver? Foi aí a reunião!

    – Mas quem são os tipos, afinal? – sondou o Gregório, até poderiam ter interesse para ele.

    – Um estrangeiro que estava lá recebeu-me em nome do grupo dos tais capitalistas, olhe, até tenho aqui um cartão – foi contando, puxando dum cartão de visita – Marang… Karel Marang, é isso, holandês, parece.

    – Quer dizer que está em maré de sorte, amigo Guedes – Alfredo Pinto ia passando os olhos pelo Século, o governo do António Maria da Silva estava em apuros e outro se adivinhava no horizonte.

    – Pois o tal Marang fez uma encomenda grande, e até me propôs a compra da fábrica, acho que representa um grupo estrangeiro interessado em investir cá, parece até que grande parte dos táxis de Lisboa lhes pertence. E pagou à cabeça, tudo em notas de quinhentos escudos! – Guedes não revelava quanto, mas quarenta contos a pronto numa mala já lá cantavam, tudo em notas de quinhentos, até lhe iam saltando os olhos. Felizmente estava guardado em segurança, no sótão do Arco do Teixeira.

    – E foi muito…? – Alfredo tentava tirar nabos do agiota, este porém não se descosia:

    – Para um almocinho há-de dar, amigo Pinto! Comidos os travesseiros, foram à vida, o Guedes iria almoçar com o Antunes ao Hotel Nunes, um naco de vitela como só o Saraiva sabia cozinhar.

    Alfredo Pinto seguiu para Lisboa, o Semana de Sintra estava com pouca saída e o Sousa Lopes, do Diário de Notícias havia prometido arranjar um investidor, o almoço seria no Grémio Literário. Atrasado, este chegou de táxi, com a edição da manhã debaixo do braço, tinha reportagem para a tarde:

    – Desculpa o atraso, Alfredo, mas nem queiras saber, está uma bronca das grossas para rebentar! -disparou, mal tirou a gabardine, que um criado do Grémio segurou, fleumático.

    – Então? O Bernardino Machado já demitiu o António Maria da Silva?

    – Não, nada de política. Pior ainda. Já ouviste falar num tal Alves dos Reis?

    – Não, nunca, tem alguma coisa lá para Sintra?

    – Esse tipo andou a comprar acções do Banco de Portugal, mais de dez mil, parece, com quarenta e cinco mil já lhe dava para controlar o banco. Nunca ouviste falar dum banco que apareceu aí há pouco tempo, o Angola e Metrópole? Pois é um dos donos. É um vivaço, que ganhou dinheiro em Angola, até já nos tentou comprar o Diário de Notícias! – o Lopes pedia vinho, a história prometia não ficar por ali – Consta que a mulher anda carregada de jóias compradas em Paris, fortuna repentina feita em África, sabes…

    – Sim, mas o que é que isso tem de anormal? – Pinto pensava ser outra coisa, o novo hospital de Sintra, que não andava, preocupava-o mais.

    – Pois parece que está metido numa tramóia, e das grandes! Descobriu-se que esse tal Alves dos Reis arranjou um contrato fictício, reconhecido no notário, e falsificou as assinaturas dos administradores do Banco de Portugal. Com uns cúmplices estrangeiros dirigiu-se à Waterlow & Sons, a casa impressora do Banco de Portugal, na posse dum documento de encomenda falsificado, e mandou imprimir duzentas mil notas com o valor nominal de quinhentos escudos, aquelas com a efígie do Vasco da Gama, sabes, uma coisa do camano, é preciso ter lata!

    – Então mas o que é que ele fez ao dinheiro?

    – Parece que anda por aí em circulação desde Fevereiro, dizem até que terá sido com ele que abriu o banco. Olha, tenho aqui o nome dos cúmplices dele na tramóia: um José Bandeira, irmão do nosso embaixador na Holanda, um alemão, Adolph Hennies, Karel Marang, holandês….

    – Espera aí! – atalhou o Pinto – Karel quê?

    – Marang. Porquê, conheces? – Sousa Lopes pareceu surpreso por o Pinto conhecer o nome.

    A conversa da manhã na Piriquita e a história da mala com notas de quinhentos do Guedes surgiu-lhe de repente, agora interessadíssimo em escutar o resto:

    – Não, não, continua… o Lopes, já pedindo café, rematava a história:

    – Aliás, como era possível o Banco de Angola e Metrópole conceder empréstimos a taxas de juro baixas, sem receber depósitos? Chegou a pensar-se que era uma táctica dos alemães para obterem vantagens em Angola. Parece que o Vasconcelos, do Século, descobriu uma nota falsificada e com o mesmo número de série na delegação do banco no Porto, e consta que há mais, é em grande escala a operação, estás a ver, se andarem por aí as duzentas mil!

    A edição de 7 de Dezembro prometia. Um telefonema para o Lopes interrompeu o almoço, aliás quase concluído, a conversa sobre o investidor para o jornal ficaria adiada:

    – Tenho de ir, é da redacção! Parece que prenderam o Alves dos Reis a bordo do “Adolph Woerman”! -Chapéu e gabardina, e o Lopes voou para o Governo Civil, onde o detido aguardava, era perto, “furo” garantido.

    De volta a Sintra e ainda incrédulo com o desplante dos burlões, Alfredo procurou o Guedes em casa, pondo-o ao corrente dos acontecimentos, poderia ter caído num conto do vigário. Apavorado, este correu para o sótão da casa e verificou as notas que Marang lhe entregara dentro da mala cartonada. Eram das tais! O negócio chorudo ficava agora em causa, quarenta prestimosos contos de réis.

    Raciocinando rápido, chamou um carro de praça, correu ao encontro do Antunes e propôs-lhe a compra a pronto dos terrenos da Portela, quarenta contos, era pegar ou largar. Surpreso, o outro hesitou, mas à vista das notas de quinhentos aceitou sem pestanejar e Guedes do Amaral suspirou de alívio, não perdera tudo.

    Pela tarde de 6 de Dezembro, o Banco de Portugal ordenou a retirada de circulação de todas as notas de quinhentos escudos e no dia seguinte o Diário de Notícias fazia manchete com a burla monumental.

    Alfredo Pinto, com o jornal debaixo do braço, depois dum café na Piriquita foi a casa do Guedes, a preciosa informação valia bem um pequeno patrocínio para o Semana de Sintra…

     

    Fernando Morais Gomes
    Fundador da Alagamares e do Núcleo do Sporting de Sintra